curto & grosso/crônica

Viver a era da covid-19 é ter medo de tudo

Ir ao supermercado tornou-se um ato de heroísmo e bravura

José Teles
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José Teles
Publicado em 21/06/2020 às 11:17 | Atualizado em 21/06/2020 às 13:31

Novo normal pra mim é o doido que recebeu alta da Tamarineira. Pelo simples fato de estar trancafiado num apartamento, há mais de três meses, não vou falar certas expressões que passaram a usar neste curto espaço de tempo. Sou radical em assuntos desnecessários. Cada qual com seus defeitos.

A prisão domiciliar tá me deixando com o sistema nervoso. Se demora mais dois meses capaz de eu acabar na prisão convencional. Por causa da Kombi do ovo. Qualquer dia cometo um ato terrorista. Quando o motorista parar pra vender o ovo dele, eu surjo com uma banda de tijolo e destruo todos. Vou preso, condenado, e pego uma prisão domiciliar. Não fará diferença, já tô nela mesmo.

Cheio também destes pequenos vexames aos quais estamos submetidos. Andar de máscara na rua, parecendo aquele médico canibal do filme. Os nervos à flor da pele, na ida e na volta do supermercado. Chegar em casa cheirando a álcool, e gastar umas duas horas lavando e enxaguando laranja, banana, pepino, passando álcool em tudo que é bregueço comprado. É triste. Antes do corona a gente bebia uma pra lavar. Agora lava uma pra beber. Tanta trabalheira e ainda meio cismado. E se um vírus mais esperto conseguiu escapar?

Durante quatro dias esperando pra ver se surgem os sintomas. E sem sair à rua. Pior do que Anne Frank, aquele garota do Diário. Anne sofreu um bocado, nunca li o livro inteiro. Até onde li, ela não perdia tempo lavando lata de cervejas e garrafas de vinhos, pacotes de salgadinhos. Mas tem que encarar a trabalheira toda, porque o vírus é traiçoeiro. Quando dá fé, feito o negão de tirar o chapéu de Alcione, a gente bobeia, e ele, créu.

O preço pra evitar a enfermidade é a eterna vigilância, parafraseando o irlandês John Philpot Curran. Curran, por sinal, foi surrupiado por políticos brasileiros. A frase se tornou o lema da UDN, e atribuída ao brigadeiro Eduardo Gomes. Mas tergiversei assaz e inutilmente. Quase nenhum compatriota tem ideia do que significa UDN e tampouco sabe quem foi Eduardo Gomes.

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