Tereza ou a Arte dos extremos

Flávio Brayner
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Flávio Brayner
Publicado em 04/08/2020 às 6:00
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Heidegger dizia que só vivendo radicalmente os extremos da vida, com todos os seus riscos, é que podíamos verdadeiramente filosofar e conduzir uma existência autêntica: ele substituíra o "ser humano" pelo "ser-aí" (Dasein), lançado no mundo e tendo que se fazer a si mesmo. Heidegger não conheceu Tereza Costa Rêgo, mas teria reconhecido nela a mulher dos extremos, aquela que viveu os riscos possíveis de uma rica existência: bisneta do Conde da Boa Vista e filha de aristocratas pernambucanos, decide se tornar comunista e combater a "sociedade burguesa"; casada nos moldes cristãos com um Juiz, decide ser amante de um notório esquerdista; de sobrenome nobre e conhecido, decide não ter nome (ou apenas um codinome, Júlia) na vida política clandestina sob a ditadura; proibida de retratar nus quando estudante de Belas Artes, os nus passam a compor temas essenciais de sua vastíssima obra pictórica; moça recatada e do lar, decide retratar os bordeis do Recife e toda a sua lascívia; provinciana de origem, decide partir para a aventura política e existencial, tendo visitando metade do mundo conhecido; destinada a ser "domesticada", decide fazer do gato (este animal sem dono, independente e mundano) o verdadeiro símbolo de sua temática artística; fadada a ser sempre a "mulher" de alguém, decide ter apenas um eterno "namorado", feito de papelão e que a visitava apenas uma vez por ano: o Homem da Meia Noite. Não é pouco para uma só vida!

Quando Tereza fez a capa de meu livro "Educação e Republicanismo", retratando uma multidão nas ruas, ela me disse que eu estava ali naquela multidão. Vasculhei rosto por rosto e finalmente "me" encontrei..., com a cara de quando tinha 23 anos, cabelos cacheados e óculos redondos, na época em que éramos colegas no Mestrado de História! Acho que ela queria dizer -mais do que me fazer uma pequena homenagem- que eu iria "morar" no interior de minha própria obra, num gesto mágico em que autor e obra, sujeito e objeto se reconciliam em uma só entidade: na Arte! Há alguns anos transferiu seu atelier, no fundo do quintal de sua casa, e todas as suas obras concluídas ou por concluir, para dentro de sua charmosa residência olindense. Não é que as obras tivessem vindo "morar" com ela, é que ela passara a "morar" no interior de sua própria obra, cheia de vermelha agitação, e de onde só saía para ir colher no Mundo os extremos que a alimentavam. É lá onde ela está agora: dentro da sua própria obra, a nos desafiar a viver os extremos. E de onde não sairá nunca mais!

Para Tereza Costa Rêgo (In Memoriam)

Flávio Brayner, professor da UFPE

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