O ano que não existiu

Tadeu Alencar
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Publicado em 28/11/2020 às 2:00
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Da varanda de onde observo todas as coisas, vejo luzes que cintilam acanhadas. Em tempos normais jamais seriam indicativas do tempo de Natal, mas é de Natal que estão a falar as luzes que piscam como estrelas inseguras. A pandemia nos obrigou a falar com comedimento, pausando as sílabas. Para ser justo, as luzes que vejo cintilam com um senso de contrição inesperado, uma responsabilidade de quem tem filhos, um arrependimento de quem deseja voltar a pecar. Essa cautela reverencia um tempo de recolhimento, parcimônia, moderação.

A sutileza não tem preço. Há uma contenção nas luzes que já foram feéricas e, agora, são tímidas, envergonhadas no seu bruxuleio, harmonizadas com um tempo que pede - ou deveria pedir - austeridade, silêncio, calma. As luzes que vejo, mais escondem que revelam. É tempo de Natal, mas as estatísticas não mentem e, por isso, as luzes tremulam, em dúvida se deveriam estar acesas.

Os Reis Magos caminham de mãos vazias: não trazem ouro, nem incenso e a mirra da imortalidade, definha. O vírus medonho continua rondando suas vítimas indefesas, até que uma vacina nos liberte da prisão do medo. A crise social e econômica se aprofunda. É necessário refazer o ninho, voltar o joão-de-barro a carregar folha por folha, até reconstruir a manjedoura das coisas que precisam nascer para alcançar o futuro.

É assustador que estejamos no final de novembro, parecendo que todos os ciclos se perfizeram - da lavra à colheita - enquanto, bem o sabemos, os pássaros hibernaram num inverno que não lhes pertencia. Pelo que diz a bússola das ordinárias sensações estamos em maio, entrando para junho, atirando prendas a Santo Antônio, ainda. E, no entanto, as falsas estrelas cintilam e dezembro já está com as patas na janela. Esse é um ano em que o tempo gregoriano foi congelado, enganado pela tresloucada alteração dos calendários; as estações se sucederam e as folhas que deveriam cair para confirmar o outono, ficaram a meio caminho entre o alto da árvore e o chão cortado pela via indigesta que leva aos formigueiros. Daqui de onde observo todas as coisas, o mesmo vento que um dia foi de agosto, sopra agora também em novembro, embora tenha começado a soprar desde junho.

É verão, mas chove sobre o Recife como se estivéssemos na semana santa. Foi um ano inteiro de chuvas intensas, acentuando essa impressão de deslocamento, de que não sabemos onde estamos, nem qual é a data do dia de hoje. Por isso que 2020 não é um ano que não vai terminar. É um ano que se perdeu e errou o caminho de volta, apesar das evidências e das luzes que, acanhadas, anunciam o Natal. Este é um ano que não existiu.

Tadeu Alencar, deputado federal (PSB)

 

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