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Viagem de uma amiga recifense a Londres

"Aliviando a solidão da pandemia, recebo visita inesperada e perturbadora de uma amiga de trinta e dois anos, que há muito não vejo. Conversa vai, conversa vem, peço para ela contar suas viagens ao exterior". Leia o texto de Arthur Carvalho

Arthur Carvalho
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Arthur Carvalho
Publicado em 24/03/2021 às 6:08
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Aliviando a solidão da pandemia, recebo visita inesperada e perturbadora de uma amiga de trinta e dois anos, que há muito não vejo. Conversa vai, conversa vem, peço para ela contar suas viagens ao exterior, sua impressão de cada país. Moça de classe média, linda, elegante, educada, simpática, charmosa, reservada, discreta e simples, apesar de poderosa, que venceu na vida com dignidade, esforço, competência e altivez.

A essa altura, o leitor perguntará se ela é a mulher ideal. Não arrisco responder por não saber definir exatamente o que seja mulher ideal, mas se não é, chega perto. Só sei que, durante nossa estreita amizade, nunca tivemos a menor rusga ou discussão, apesar das confidências.

O nome dela não digo, não quero ter inimigo nem quero sentir remorso.

Em um de seus passeios, sozinha, a Londres, travou o seguinte "diálogo" com um inspetor, no aeroporto. Gringo de dois metros, de maus bofes, após ele conferir o seu passaporte:

- O que você veio fazer aqui? - Passear. - Onde? - Na cidade. - Por quanto tempo? - Vinte dias. - Vai se hospedar em que hotel? - No Liverpool.

Intrigado por ser um quatro estrelas, o mala suspendeu o interrogatório e fixou os olhos verdes nos seus olhos castanhos, sem saber como prosseguir. Recomposto, continuou:

- Profissão? - Gerente de estatal federal. - Carteira de trabalho? - Não trouxe. - Parentes ou amigos na Inglaterra? - Não. - Estado civil? - Solteira.

O biltre esboçou um risinho boçal e cretino, rangendo os dentes.

- Filhos? Não tenho. - Mora no Rio ou São Paulo? - No Recife. - Onde é isso? - Nordeste do Brasil. Tem praias lindas e sol o ano inteiro. - Ordenado? Mostrou os contracheques, ele leu, releu, estremeceu. - Por ano? - Por mês.

Era demais. Uma negra brasileira ganhar mais que um policial branco, de olhos verdes, súdito da rainha. Vencido, perplexo, humilhado e ofendido, liberou aquela arrogante negra recifense. Afinal, os passageiros recém-desembarcados do mesmo voo já haviam passado sem se submeterem à minuciosa, vexatória e constrangedora revista a que ela foi submetida. Tudo conforme a secular democracia britânica. Restando a decantada cortesia e fleugma inglesa, para inglês ver, como aprendemos na escola primária, na universidade e nas mesas de bar.

Arthur Carvalho - Federação Internacional dos Jornalistas

  *Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

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