ARTIGO

Como um gesto de adeus...

"Dizer adeus ao tradicional papel é como se despedir de um velho amigo que ocupou todas as minhas manhãs e que eu, com ansiedade, esperava que o entregador o deixasse na portaria de meu prédio". Leia a opinião de Flávio Brayner

FLÁVIO BRAYNER
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FLÁVIO BRAYNER
Publicado em 06/04/2021 às 6:08
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"Fui acostumado a ler jornais todos os dias em sua base física (papel)" - FOTO: PIXABAY
Leitura:

No livro de Jerrold Seigel, "Paris boêmia. Os limites da vida burguesa", há uma passagem em que ele se refere ao papel que os jornais impressos exerceram na formação de uma opinião revolucionária, no período anterior à revolução francesa. Como as assinaturas eram muito caras (e só se vendiam jornais por assinaturas), os cafés parisienses os utilizavam para atrair diariamente clientes (ainda é muito comum, nos cafés de Paris de hoje, se ver pessoas lendo ou escrevendo). Num desses cafés, ainda existente, Le Procope, perto de Odéon, há uma mesinha de mármore preservada que fora quebrada por ninguém menos que... Voltaire, num momento de euforia, em pé sobre a mesa, em que comentava uma notícia de jornal! Na verdade, os jornais eram lidos e discutidos em voz alta e constituíam uma espécie de espaço público em que, mesmo as pessoas que não sabiam ler, podiam ouvir as notícias lidas por alguém e discuti-las.

Com o desenvolvimento da tecnologia -as rotativas, que aumentaram exponencialmente as tiragens diárias- a leitura pública das notícias feita em lugares também públicos, foram desaparecendo e cedendo lugar à leitura privada do leitor individual: esta "individualização" da leitura do jornal criou uma nova relação entre o leitor e a leitura, relação que já havia acontecido também com o livro (na Idade Média os livros eram lidos em voz alta e Santo Agostinho certa vez assustou-se ao ver um monge "lendo apenas com os olhos"!): uma relação altamente individualizada como garantia de meu direito de acesso ao saber e à interpretação pessoal dos fatos e eventos, estabelecendo, ao mesmo tempo, uma intimidade, uma relação sensual, táctil e olfativa com a matéria física do impresso.

Fui acostumado a ler jornais todos os dias em sua base física (papel) e, agora, nosso querido e centenário Jornal do Commercio deixa de circular neste modo e adere ao modelo "on line", uma adaptação perfeitamente compreensível às exigências de viabilidade econômica impostas por um tempo saturado de tecnologia. Ivanildo Sampaio disse-me, em conversa recente, que Luis Fernando Veríssimo quase parou de escrever suas formidáveis crônicas quando fora obrigado a substituir sua Olivetti pelo computador, ao qual terminou se adaptando muito bem. De minha parte, como colaborador há quinze anos do JC, dizer adeus ao tradicional papel é como se despedir de um velho amigo que ocupou todas as minhas manhãs e que eu, com ansiedade, esperava que o entregador o deixasse na portaria de meu prédio, sem o quê, meu dia - um novo dia!- não podia começar...

Flávio Brayner, professor da UFPE

*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

 

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