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Os últimos serão os primeiros

"Depois de ter sido sempre o último, sou tratado em primeiro lugar. Tem sido assim nas filas dos bancos, das lotéricas, das padarias, dos supermercados, dos estacionamentos e, agora, nos cemitérios". Leia a opinião de Flávio Tiné

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FLÁVIO TINÉ

Publicado em 10/04/2021 às 6:37 | Atualizado em 10/04/2021 às 6:38
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Desde o curso primário tinha por hábito me esconder nas últimas cadeiras. Pura timidez. Mantive o hábito nas centenas de assembleias de que participei no sindicato dos bancários do Recife e no sindicato dos jornalistas de São Paulo. Talvez não fosse apenas timidez, fosse também insegurança, derivada da falta de conhecimentos, me perguntando o que queria fazer da vida. A vantagem era a visão ampla do ambiente, como na grande angular da máquina fotográfica.

Essa dúvida impediu de obter diploma de curso superior, que progredisse, que enriquecesse, que me tornasse famoso, que me casasse com uma milionária, que virasse alguma coisa, pelo menos presidente de um time de botões.

Só me senti importante quando descobriram meu telefone, meu endereço, meu CPF e até meu número do SUS, só porque tenho prioridade na vacinação, aos 84 anos, pelo risco de morte iminente no caso de contrair Covid19. Agora sou o primeiro da fila - triste privilégio.

Além de ler em paz, ver televisão quando desejo, consultar e-mails sem nenhuma pressa, sou um dos que podem vacinar-se em primeiro lugar contra essa pandemia que nos ameaça a todos em todo o mundo.

Há exatamente um ano era o último a receber visita. Só recebia telefonema de vendedores e de espertalhões querendo o número do meu cartão de crédito ou oferecendo empréstimo compulsório. Ofereciam Omega 3 e plano funeral, com garantia de tranquilidade na hora do enterro. Por baixo da porta, enfiavam folhetos de pizzas e de manicures oferecendo serviços.

De repente, não mais que de repente, me sinto o primeiro em tudo. Na falta de rabecão, a prefeitura de São Paulo contratou peruas escolares, que substituem assentos por confortáveis caixas funerárias. Defunto tem preferência.

Como se vê e se conclui, depois de ter sido sempre o último, sou tratado em primeiro lugar. Tem sido assim nas filas dos bancos, das lotéricas, das padarias, dos supermercados, dos estacionamentos e, agora, nos cemitérios. Graças a Deus!

Após ler esse comentário, o cirurgião Alberto Kanamura acrescentou: "Enfim, seremos enterrados sãos e salvos".

Flávio Tiné, jornalista da UBE/PE

  *Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

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