Opinião

As tragédias de amanhã são gestadas hoje

"A pandemia tem nos dado diariamente esta lição: o comportamento das pessoas no presente gera colheitas no curto e no médio prazo". Leia a opinião de Priscila Lapa

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PRISCILA LAPA

Publicado em 26/04/2021 às 7:58
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Existem processos em curso na sociedade, cujo efeito só causará estranheza ou perplexidade quando emergirem conflitos amplos e que ameacem o status quo. São fatos menos estridentes do que
agenda do dia – escândalos, CPIs, negociações –, mas nem por isso menos comprometedores do futuro. As tragédias de amanhã são gestadas hoje, aqui, agora. A pandemia tem nos dado diariamente esta lição: o comportamento das pessoas no presente gera colheitas no curto e no médio prazo.

Olhamos para a extrema pobreza que atinge 12,8% dos brasileiros (quase 27 milhões de pessoas), conforme dados da Fundação Getúlio Vargas de janeiro deste ano, como fato corriqueiro, porque aprendemos na escola ou observando à nossa volta que essa é a nossa realidade. Para muitos, com pandemia ou sem ela, sempre existiram pobres no Brasil. Ou seja, para alguns, “se não tem remédio, remediado está”. Ignoram os nobres cidadãos que taxas representam uma fotografia do momento e que, em diversas ocasiões, conseguimos reduzi-las retirando pessoas da condição de miséria. Não é passe de mágica: é com política pública que se distribui renda. São necessários atores, decisões, compromissos e ação.

A pressão sobre o sistema de saúde não sumirá sem deixar rastros. Os avanços das últimas décadas na saúde preventiva podem ir por água abaixo com a desinformação e até mesmo pela exaustão de recursos financeiros, de material, humano. E o que dizer da tragédia da educação, silenciosa, sem precedentes, a escancarar as desigualdades de acesso, a falta de estrutura, o abismo entre o ensino público e o privado? Não temos nos dado conta das consequências da atual fase, em que não conseguimos construir
um plano, uma estratégia, um caminho para que as aulas possam acontecer em ambientes seguros, preparados, e sem interrupções bruscas que geram danos irreparáveis.

O desemprego em curso também é fator de ruína, pois não há perspectivas de solução em curto prazo e, enquanto ela não chega, famílias são destroçadas, negócios quebram, cidades ficam devastadas. Afeta o
indivíduos e, ao mesmo tempo, a coletividade.

Outra tragédia que passa despercebida é a descrença. Pessoas que não crêem em seus representantes e nem em “autoridade” alguma: especialistas, estudiosos, lideranças. Instituições sem credibilidade, frágeis, vulneráveis. Uma sociedade que passou a viver do hoje, em um cotidiano que não conversa com
o amanhã. A “revolução” em curso é a do aprofundamento das nossas mazelas, da falta de consensos e de projetos estruturadores. A cada dia perdemos um pouco e, quando nos dermos conta, teremos um
país ainda mais esfacelado, dilacerado, inviável. Aí acordaremos das nossas ilusões, segundo as quais a pandemia era só mais uma questão diante de tantas já existentes. Deixa estar.

Priscila Lapa é cientista política

*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

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