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Somos o resultado de lembranças

Saberei discernir entre o real e o ilusório? Agrada-me o que não sou; assim, descubro-me lentamente à medida que o tempo passa

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FÁTIMA QUINTAS

Publicado em 19/05/2021 às 6:10
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O dia amanhece chuvoso: céu nublado, nuvens acumuladas, umidade excessiva. No ar, o estranho desejo de claridade. Tudo parece em reclusão na natureza. Os pássaros se escondem, a imagem difusa me conduz a pensamentos vários, uma estranha sensação de fascínio acontece diante do cotidiano.

Abro a cortina, acesso a janela, o mundo aflora, ainda que indeciso. Percebo as sombras do dia, o que me leva a uma profunda meditação. Opto pela poltrona e me entrego às divagações. Sequer espio o relógio, acato sem pestanejar a inteireza do Eu. O passado me envolve de tal maneira que o revivo com certa alegria. Lembro-me de tantas coisas! Nada surge como impossível no ato de recordar. Somos o resultado de lembranças. E dia a dia reminiscências crescem objetivando afagar a alma.

O desenho poético me acolhe como refúgio do silêncio. Os móveis em reclusão acompanham os devaneios. Logo penso nas metáforas poéticas: "Que horas são? Não sei. Não tenho energia para estender a mão ao relógio". Prefiro enganar-me em uma entrega total ao mergulho de mim mesma. Estou em outro lugar, em outra época, nos instantes que me fazem bem. Vou e volto no mesmo ritmo. Perco-me na visão imediata. Recorro aos subterfúgios que me tornam alheia a mim mesma. Não tenho idade, nem nome, sou tão somente o reflexo de épocas.

Saberei discernir entre o real e o ilusório? Agrada-me o que não sou; assim, descubro-me lentamente à medida que o tempo passa, distante de conclusivas afirmações. Não me definam, por favor. Há tantos caminhos a percorrer que jamais sei qual deles assumir. Ainda bem. Assim, atravesso estradas desconhecidas, uma aqui, outra ali; os becos se multiplicam, imagens proliferam, acabo por me esconder atrás do véu que cobre o rosto. Não tirei bilhete para a vida; quero usufruí-la ao meu modo, sem compromissos definidos, salvo a irrequieta vontade a explodir dentro do peito. Tudo me parece por começar. Preciso seguir adiante sem prévias definições. A gaveta do Ser necessita de preenchimento. Que os desejos sigam as etapas, algumas apressadas, outras vagarosas, ainda as que hesitam diante dos mistérios do Tempo. Apenas aprenderei a contornar os obstáculos.

Estou cansada de refletir, mas não me peçam para interromper o impulso de descobrir-me. Recorro ao poeta na certeza de encontrar-me. "Quando é que despertarei de estar acordada?"

Fátima Quintas, da Academia Pernambucana de Letras

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