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Ao viver as nossas duas vidas

Busco entender a passagem do dia, mas acabo por me confundir com os instantes que se seguem ao largo da minha vontade

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FÁTIMA QUINTAS

Publicado em 26/05/2021 às 6:10
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Não vou viajar, mas arrumo as malas todos os dias. Hábito que me incomoda, porque artificial. Os recomeços acontecem em uma continuidade que se chama Tempo. Busco entender a passagem do dia, mas acabo por me confundir com os instantes que se seguem ao largo da minha vontade. Quantas vezes tentei segurar os ponteiros do relógio em uma ousadia jamais definida! A vida não se repete; os dias, entretanto, se acumulam em uma sequência que surpreende. Abro e fecho os olhos, o exterior independe de mim. Não adianta enganar-me; sou tão pequena que me reduzo ao que não sei.

Por mais que busque perspectivas outras, vence a natureza desconhecida do oculto. Traduzo versões que não se parecem com os significados. Há um hiato tão incógnito quanto misterioso; vence, contudo, as possíveis miragens. Urge recriar ilusões — ir além do mínimo que posso prever, afinal, a rotina se transforma a cada minuto. O círculo da perenidade substantiva o breve e o estável; jamais depende dos meus anseios. Até onde poderei chegar de posse da nula capacidade de adivinhar o futuro? O presente me basta porque nele há um fio de meada que transcende a tudo que aprendi. E a alma garante a inexatidão do agora. Irei por qual caminho? Nunca saberei. Melhor assim. Quantas vezes tentei encontrar a definição de mim! Olhei para os lados, os recantos pareciam se movimentar, ainda que o corpo permanecesse absolutamente estático. De quantos horizontes sou formada? Impossível acumular as veredas do instante. Trago o excesso do que não sei e do que sei. Em algum momento, tentei distinguir entre um e outro? Jamais. Não tenho forças suficientes para interagir com os inúmeros Eus que me formam.

As circunvoluções são tantas que opto por não entendê-las. A miragem é suficiente para desenhar as multiplicidades do sim e do não. Ao longo da caminhada, percebo a força do símbolo. E o pensamento mergulha na vaguidão do universo. O cosmo aponta para além do concebível. Melhor fugir das fantasias que me cercam. Não adianta insistir. Estarei sempre ao lado do meu retrato. Por mais que decida decifrá-lo, oculto-me na paisagem interior. Os instantes sugerem e exprimem o advir. Será que tudo existe em um nada jamais identificado? Estou cansada de pensar. O que farei no vazio do mundo? O "redor" se transforma na inexatidão do "derredor".

Não tenho respostas. Nem almejo apostar no improvável. Melhor acatar o silêncio que explode no corpo. O poeta já afirma: "Temos todos duas vidas;/A verdadeira, que é a que sonhamos na infância, /E que continuamos sonhando, adultos num substrato de névoa;/A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros. (...) Quando é que despertarei de estar acordada?".

Fátima Quintas, da Academia Pernambucana de Letras

 

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