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Tribunal de Nuremberg invertido em Pernambuco

"O nosso ex-Secretário de Defesa Social, Antônio de Pádua, criou a figura inversa e inédita, a meu ver, na responsabilização por atos criminosos: a RESPONSABILIZAÇÃO PARA BAIXO, quando disse que o Comandante das operações desastrosas do dia 29, tinha "Livre Arbítrio" (para cegar ou matar?)". Leia a opinião de Flávio Brayner

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FLÁVIO BRAYNER

Publicado em 15/06/2021 às 6:08
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O Tribunal de Nuremberg teve que lidar com alguma dificuldades de ordem, digamos, de conceituação jurídica dos crimes nazistas, ao ponto de ter sido retomado o conceito de "Crime contra a Humanidade" que George Washington utilizara num panfleto contra o Rei Leopoldo II da Bélgica, em 1890. Não se tratava de crimes contra um conjunto de homens ou contra uma população (de judeus, por exemplo), mas contra o que havia de "humano" em cada homem. À exceção de Herman Göering, que se suicidou na prisão e não foi enforcado, todos os condenados alegaram em sua defesa que estavam "obedecendo ordens superiores". Como o Nazismo impunha hierarquias fortemente disciplinadas ("Autoritätprinzip"), a desobediência era severamente punida. Era a estratégia da RESPONSABILIZAÇÃO PARA CIMA.

O nosso ex-Secretário de Defesa Social, Antônio de Pádua, criou a figura inversa e inédita, a meu ver, na responsabilização por atos criminosos: a RESPONSABILIZAÇÃO PARA BAIXO, quando disse que o Comandante das operações desastrosas do dia 29, tinha "Livre Arbítrio" (para cegar ou matar?). Não sei o que Santo Agostinho, redivivo, diria do uso casuisticamente pernambucano desse conceito, mas provavelmente não faria dele um meio de desresponsabilização dos governantes em relação aos desmandos de seus subordinados.

A questão do Livre Arbítrio é uma tentativa de responder à inquietante questão "Se Deus é infinitamente Bom, por que existe o Mal no mundo (que Ele mesmo criou)?". É aqui onde o conceito entra: o Homem disporia da possibilidade de escolha entre o bem e o mal, no exercício de sua vontade e como agente consciente e livre para fazer opções. A concepção agostiniana vai se prolongar na tradição reformista (Lutero era agostiniano) assegurando que mesmo diante da Providência, o homem dispõe da possibilidade de agir e de fazer escolhas, uma concepção muito adequada à chamada "era burguesa" do "self made man". Agostinho, ao pensar o conceito, imaginava que o homem poderia fazer seu próprio caminho em direção a Deus e mesmo tendo tido uma vida de "pecado" (como ele mesmo, aliás!), esse encontro era possível, depositando na consciência de cada um a possibilidade de fazer seu destino.

O bom, com nosso ex-Secretário Antônio de Pádua, é que, como foi "vontade deliberada" do Comandante no exercício de seu "LIVRE ARBÍTRIO", o próprio Comandante nunca poderá alegar que "obedecia a ordens superiores": Pernambuco inverteu Nuremberg! Vão-se os anéis dos subordinados militares, mas ficam os dedos dos candidatos à próxima eleição que se aproxima.

Flávio Brayner, professor da UFPE

*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

 

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