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Esquerda, direita, passado e futuro

"Uma esquerda contemporânea deve realizar o exorcismo dos seus mitos e em seu lugar colocar valores e princípios tais como democracia, direitos humanos, justiça social, paz e sustentabilidade ambiental. O mesmo vale para a direita". Leia a opinião de Raul Jungmann

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Raul Jungmann

Publicado em 17/06/2021 às 6:01
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Um amigo, num desses inumeráveis grupos de WhatsApp em que convivemos virtualmente, postou um banner em comemoração ao nascimento de Che Guevara. Rebati, provocativamente: "a essa altura? Pobre esquerda...". Um outro, circunspecto, afirmou que "a revolução cubana perdeu-se, mas livrou o país da ditadura brutal de Fulgêncio Batista". Sim, pode ter livrado, mas a deterioração da revolução cubana desembocou numa ditadura tão a mais brutal que a do tirano deposto.

É um claro enigma esse apego da esquerda aos seus mitos. Ditadura, se possui na sua certidão de nascimento o carimbo de "revolução libertária e popular", ainda que com incontáveis desvios, sanguinária e desumana, guarda permanentemente, para alguns, o aroma inebriante dos seus anos românticos de assalto aos céus. O problema é o que fazer com a crítica dos mesmos desvios e patologias quando provindas da direita: qual seria a sua sustentação moral? Tortura, morte e opressão são o que são apenas de um lado do espectro ideológico, no caso a destra? E onde entram ai os celebrados Direitos do Homem da Revolução Francesa - outra que degradou-se no Terror; e mais recentemente, pós a carnificina de duas guerras mundiais, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU de 1948? Há quem queria medir regimes tirânicos, a direita e à esquerda, pelo seu benefício econômico, caso do Chile de Pinochet, ou social, caso de Cuba, como se pudessem existir contrapesos positivos à violência, perda da liberdade e ao sufocamento de muitos, o que significa legitima-las, ainda que parcialmente. Ou que os fins (alcançados) justificam os meios (a tirania). Essa operação, porém, nivela tudo e todos, a esquerda e a direita, tornando-as indistinguíveis, moral e eticamente, e ambas inaceitáveis e imprestáveis como chave para o presente e o futuro.

Uma esquerda contemporânea deve realizar o exorcismo dos seus mitos e em seu lugar colocar valores e princípios tais como democracia, direitos humanos, justiça social, paz e sustentabilidade ambiental. O mesmo vale para a direita. O campo da divergência entre elas há de ficar para além desse núcleo pétreo de intenções, ações e compromissos. Caso contrário, delas dir-se-á o dito de Talleyrand sobre os bourbons: nada esqueceram, nada aprenderam.

Raul Jungmann, Ex-Ministro da Reforma Agrária, Defesa e Segurança Pública

*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

 

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