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Instinto de advogado me diz ser necessário planejar a vida depois da morte

"Talvez por solidariedade a 487.000 mortos, e contando, ou pela iminência de me incluir entre eles, mesmo após duas doses de vacina, não deixo de pensar nela, a morte. O instinto de advogado me diz ser necessário planejar a vida depois dela". Leia o texto de João Humberto Martorelli

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JOÃO HUMBERTO MARTORELLI

Publicado em 17/06/2021 às 6:08
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Talvez por solidariedade a 487.000 mortos, e contando, ou pela iminência de me incluir entre eles, mesmo após duas doses de vacina, não deixo de pensar nela, a morte. O instinto de advogado me diz ser necessário planejar a vida depois dela. Ficam aqueles que disporão de meu corpo, de minhas coisas. Engraçado, meu corpo e minhas coisas não mais me pertencerão, já estou morto, tenho o pensamento fixo na indesejada das gentes, aquela que tudo transforma em nada, o curso natural do nada. E a memória do que fomos na memória de outros. O testamento vital, prefiro dizer a mensagem.

Kafka deixou a Brod a ordem para queimar todos os escritos, e Brod não obedeceu, não teríamos O processo. É certo que Kafka ainda vivo Brod lhe disse que não destruiria seus manuscritos, e Kafka, assim mesmo, não o destituiu da condição de testamenteiro, significando que, diante da morte, teve vontades e desvontades, eia, Guimarães Rosa! A morte nos deixa indefesos, sem controle sobre o que fizemos ou deixamos de fazer. Por isso, tantas atitudes a tomar diante da quase, ávida, ameaçadora, a não substantiva, adverbial e adjetiva. Deixar rastros de vida é vencê-la, coitado.

Aos que me sobreviverem, ainda assim, deixo a mensagem, minhas vontades, das quais cuidarão meu amor e os meus filhos. Aí vai começando com Noel: não quero flores, quero uma fita amarela gravada com o nome dela. Cremem meu corpo, e pronto. Comigo, no fogo, a fita e poemas: "Elegia quase uma Ode", de Vinícius, Pneumotórax, de Bandeira, em um dos versos minha declaração para ela, Os Quatro Quartetos de Elliot, toda a obra poética de Drummond, de Pessoa, essas últimas duas cabem em um livro cada, tomem de minha biblioteca, coloquem em um cantinho da essa, as demais podem rasgar de meus livros e garbosamente lançar sobre meu cadáver, aí sim, como flores. Não tenho, nem terei, coragem de me desfazer de meus poemas, um irresistível apego à vida. Em cada um deles, há um acontecimento, uma pessoa, minha mãe, meu pai, meus filhos, a mulher, não são palavras cunhadas em verso, são apenas emoções. Queimem-nos, não os leiam. Eu os escrevi para mim, deixem que me sigam no fogo, mas não junto ao cadáver, fogueira à parte.

Não quero padre, nem reza. Minha relação com o Divino sempre foi misteriosa, insondável para mim mesmo. Devoto de ocasião de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e de Fátima, deixo-lhes, ainda em vida, minha súplica. Também não quero bandeiras e símbolos rubro-negros, pernambucanos, brasileiros. Os símbolos me decepcionaram bastante em vida, e deles quero distância. Deixem-me com o interior cosmopolita, sem fronteiras. As cinzas devem servir de adubo para uma planta qualquer, a esperança altaneira do legado em ser vivo.

Por fim, ao invés daquela reza de padre, a qualquer momento de minha morte, quero, enquanto o fogo crepitar, a reza cívica, todos gritando a plenos pulmões: Bolsonaro, genocida! Ah, minha claustrofobia: por favor, jamais fechem o esquife. Não disse tudo, apenas o essencial.

João Humberto Martorelli, advogado

*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

 

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