Opinião

Viver é perigoso

"O certo é que somos, em qualquer idade, figuras adjacentes. Quem diria que estaríamos agora caminhando, lentamente, em telhados de vidro, com rostos mascarados, respiração ofegante, óculos embaçados e se empapando em álcool?". Leia a opinião de Dayse de Vasconcelos Mayer

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DAYSE DE VASCONCELOS MAYER

Publicado em 18/07/2021 às 11:03 | Atualizado em 18/07/2021 às 11:03
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Gregório Munõz, promotor turístico, foi o último sevilhano a estar com o poeta João Cabral de Melo quando ele ainda vivia. Aproveitou a vinda ao Recife e viajou até o Rio de Janeiro para uma visitação ao
poeta. Fez entrega, na ocasião, de um mimo em retribuição pelo que o escritor havia escrito sobre Sevilha. Sentiu uma grande amargura ao se deparar com um homem triste, cego e com uma depressão profunda. Foi então que decidiu cantar uma sevilhana que dizia “Não se vá porque até a minha guitarra gentilmente chora quando tu dizes adeus”.

Dias depois, em 9 de outubro de 1999, o poeta deixava este mundo. Mesmo em instantes de amargura e desespero, talvez ele não desejasse partir. Mas estava convencido de que era impossível matar a morte e que “viver é perigoso”, como diria Guimarães Rosa.

O certo é que somos, em qualquer idade, figuras adjacentes. Quem diria que estaríamos agora caminhando, lentamente, em telhados de vidro, com rostos mascarados, respiração ofegante, óculos embaçados e se empapando em álcool? Olhamos os outros e sequer podemos estender a mão para ameigar filhos e netos. Começo a pensar no pedreiro que cuida dos túmulos. Quando eu morrer não quero anjos ornando a minha morada. E fugirei daquelas figuras que me olham, rezam um Padre Nosso
incorreto, usam a mímica para o disfarce e futricam perto de mim.

Quero paz, sossego – tudo aquilo que não obtive em vida. Só não desejo fechar os olhos numa segunda-feira. É um dia arredio, cheio de entulhos do final de semana. Desejo partir numa sexta-feira, pertinho do domingo.

Tenho uma coleção de relógios. Ao todo são 38. É difícil o funcionamento simultâneo de todos. Queria morrer ouvindo tic-tac, tac-tic. Logo raciocino que minha vida se converteu na medição e controle do tempo. Jamais cheguei atrasada a um compromisso e nunca consegui nadar e andar de bicicleta.

Por isso vou pedir, no outro lado da vida, uma bicicleta voadora. Passarei por todas as janelas dos amigos e deixarei em cada uma a magia do sono sem reclamos. Conversei ontem com Cida, minha “assessora” doméstica.

Ela não se alimenta. Só toma café com muito açúcar. Sempre me diz que comer durante o dia provoca um estado de tédio ou preguiça que dificulta o trabalho. Também não gosto de comer.

Mas adoro sentir a água perfumada que respinga em mim após o banho ou quando vou adormecer. Eu me perfumo para sentir que ainda vivo e para intensificar o que sou. Puxa vida! Só agora descobri que sou menina, adolescente e uma mulher excessivamente exaurida

Dayse de Vasconcelos Mayer é escritora

*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

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