ARTIGO

A montanha da saudade

"Quem disse que ousarei desfolhar-me por inteiro? Tudo deve acontecer devagar, como se as recordações necessitassem de um mínimo de adaptação. Quantas vezes me retraio para não enfrentar a montanha da saudade? Os anseios renascem". Leia o texto de Fátima Quintas

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FÁTIMA QUINTAS

Publicado em 28/07/2021 às 6:08
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É noite. Fecho a porta do quarto, sento-me na poltrona, deixo-me invadir por todas as sensações vividas e não vividas. O dia escurece, a luz é artificial, os pensamentos me invadem diante do silêncio que desabrocha na quietude de um céu sem claridade. Cerro os olhos por um instante. Busco a interioridade da alma que se curva diante do recolhimento. A paisagem exterior permanece em plena quietude. Nada analiso, procuro apenas reavivar um passado que nunca adormeceu. A possível identidade se edifica ao longo dos tempos que já se foram, mas deixaram na memória a força da expressão. As miragens não desaparecem quando os resquícios da alma permanecem em pleno vigor. Fujo do momento do agora, recorro aos anos acumulados, ainda menina, tão inocente e tão verdadeira. Urge renascer, assim reavivo o que sou. Quem disse que ousarei desfolhar-me por inteiro? Tudo deve acontecer devagar, como se as recordações necessitassem de um mínimo de adaptação. Quantas vezes me retraio para não enfrentar a montanha da saudade?

Os anseios renascem. Não sei se o passado é presente ou o presente, passado! Vou e volto na lucidez de retornar-me mais completa. Lembro-me do poema "Tabacaria" de Fernando Pessoa: "Estou hoje perplexo, como quem pensou, e achou e esqueceu". Será que tudo é sonho ou resultamos de uma sequência desordenada? O que foi, o que é, o que será? Jamais responderei. Os segredos lá do íntimo vão se revelando tão lentamente que opto por deixar-me enganar. Não tenho pressa em fotografar-me nem por dentro nem por fora. Que a temporalidade se dilua na vibração do agora. Entre o ontem e o hoje, a mente se edifica para o amanhã. Os lapsos acalmam o Ego. O que não sei, invento; e não há nada melhor que brincar com os esquecimentos. Desaprendi e aprendo de novo. Então, sou outra, sequer transporto-me ao sabor de lugares diversos. Apenas vou ...

Chegarei onde? Não importa. Os caminhos são múltiplos e desejo percorrê-los um a um. Piso na areia com o prazer de quem sente a terra do mundo inteiro. Não há limites. Estarei pronta para ir além do que posso. Alargarei os horizontes e me perderei em meio à multidão do deserto. Não receio atravessar léguas de distância. O importante é entender mais uma vez o poeta: "O mundo é para quem nasce para o conquistar/ e não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão". Sigo adiante. Tenho impulsos capazes de desbravar o universo. Aí, sim, estarei revolvendo a profundidade do espírito. Os olhos captam o invisível; quero traduzir os artificiais significados. E mais: não entendê-los. Quanta contradição em um Ser tão frágil! Nada me basta, anseio pelo impossível e consigo revisitar-me segundo a segundo. Penso. Penso de novo. E esqueço tudo para doar-me à luz da imaginação.

Fatima Quintas, da Academia Pernambucana de Letras

 

 *Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

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