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O tempo de meu pai na terra acende no peito a chama da vida

"Faz dois meses que meu pai se encantou. Não consegui falar disso antes, porque o luto é paralisante. Trabalha-se com o esquecimento, a fim de preservar a memória". Leia o artigo de Tadeu Alencar

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Tadeu Alencar

Publicado em 31/07/2021 às 6:00
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Faz dois meses que meu pai se encantou. Não consegui falar disso antes, porque o luto é paralisante. Trabalha-se com o esquecimento, a fim de preservar a memória. Foi preciso a placidez da chapada do Araripe para me dar a tranquilidade de pensar sobre o meu pai e o seu tempo entre nós. A primeira imagem que guardo dele é a de um homem jovem, cabelos pretos, camisa safari, calças brancas de linho diagonal, óculos escuros de aviador, com um ar confiante no futuro. "Tudo é como Deus quer", dizia, mas sabia como os deuses precisam da nossa ajuda. Olhava o horizonte sem mirar as moedas de ouro no fim do arco-íris, embora as perseguisse, mesmo sem enxerga-las.

Um homem determinado a vencer os desafios há de se alimentar do trigo da esperança. Organizado, diligente, planejava as coisas com o esmero de um artesão. De orfandade precoce, não gostava de arriscar-se no jogo. Não era ousado, mas a obstinação e a férrea vontade eram seu elmo, seu escudo e sua lança. Jamais buscou semear inimizades, mas não deixava o atrevimento pensar que andava desarmado. Religioso, humano, gostava de ajudar os pobres. Viveu dos seus estipêndios, mas jamais os ultrapassou. Dava gosto tocar os seus pés, de tão brancos, de tão macios.

Era incrível como sabia dar a cada um a sua porção de cuidado, com a maestria de quem aprendeu a repartir. Elegeu o trabalho e a família como metas. Adorava valsas vienenses e o som assustadoramente doce do clarinete. Era emotivo e deixou em cada um dos filhos fragmentos dessa característica. Foi um esposo amoroso a vida inteira. " Tempo é questão de prioridade ", era outra das suas crenças. A sua glória era ver a realização dos filhos, jamais pretendendo escolher os seus caminhos.

Reto, leal, não trapaceava nunca, numa autenticidade rústica, transparente. Educava pelo exemplo. Certo dia me disse: "eu daria tudo para reaver os meus vinte anos", sintoma da angústia dos relógios, enfermidade antiga. Sempre o vi encarar a morte com a tranquilidade dos que têm fé. Já agora, senti que a temia. E deixou que ela viesse, com suavidade, dando tempo de que cada um de nós pudesse estar com ele, numa rara intimidade entre o céu e a terra.

O tempo de meu pai na terra acende no peito a chama da vida. Se teve uma vida plena, como a vida plena teve, a sua vida não foi pequena. E como tudo vale a pena, se a vida não é pequena, a alma não pode ser. Ficou mesmo uma enorme saudade, uma tatuagem na memória, que aqui, diante da majestade da imemorial floresta, fala de amor, este que é a medida de todas as coisas.

Tadeu Alencar, procurador da Fazenda Nacional e deputado federal

 

  *Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

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