Lattes fora do ar: tomei um susto com a irresponsabilidade do CNPq
"A Plataforma Lattes é o Moloch (Deus sacrificial dos Amonitas) que nós alimentamos com nossas 'produções' intelectuais e que transforma a todos nós, pesquisadores, em 'empreendedores acadêmicos', este novo arranjo subjetivo ultraliberal". Leia a opinião de Flávio Brayner
Sim, confesso que tomei um susto e fui correndo abrir a "Plataforma Lattes" pra ver se minha "vida" ainda estava ali. E diante da página bloqueada, tive a sensação de que ela tinha chegado ao fim! A notícia de que a Plataforma administrada pelo CNPq havia "queimado" e que não havia "back up" exasperou todo o mundo universitário: sem Lattes simplesmente não existimos. Ali não está um Currículo Vitae, está a VIDA CURRICULARIZADA, ou seja, não interessa, para meus pares, avaliadores ou financiadores quem EU SOU, mas O QUE EU PRODUZI, e eis como num passe de magia digital o SER SE REDUZ AO FAZER e o MEIO SE TORNA FIM...
Numa Live recente com minha querida colega Maria Tereza Goudard (UERJ), fui perguntado "se a Universidade ainda guardava algum espírito crítico"? Respondi que sim, mas que estava caminhando para deixar de ser uma INSTITUIÇÃO para se tornar uma ORGANIZAÇÃO (uma Empresa). O que isto quer dizer? A Crítica é uma tomada de distância (daí a expressão alemã "KritikVerfremdungseffekt", ou "Efeito de distanciamento crítico"): foi isto que fez a Universidade para se libertar da tutela da Igreja e do Estado, quando Kant sugeriu aquilo que hoje entendemos por 'autonomia de cátedra' (Kant; "O conflito das faculdades"). Mas, um novo espectro a ameaça: a tutela do mercado. Assim, o primeiro exercício crítico que a universidade deve praticar é o da autorreflexão e tentar compreender a armadilha que ela armou para si mesma: ao se tornar um lugar de "produção" (de "conhecimento") e avaliar seus "produtos" (algo que antes estava reservado à indústria) ela se torna uma instituição unidimensional (uma Organização). Isto que dizer que o efeito transformador da "crítica" (das relações sociais, das estruturas de dominação, do fetiche do mercado...) fica ameaçado, na medida em que a própria crítica contida em nossos artigos supostamente "progressistas" entra necessariamente num MERCADO SIMBÓLICO de prestígio, financiamento, concorrência, progressão funcional, hierarquia. Em duas palavras: a crítica ao Princípio de Performance (Marcuse) faz parte da própria performance, reduzindo seu efeito de distanciamento judicativo e hierarquia de valores! A Plataforma Lattes é o Moloch (Deus sacrificial dos Amonitas) que nós alimentamos com nossas "produções" intelectuais e que transforma a todos nós, pesquisadores, em "empreendedores acadêmicos", este novo arranjo subjetivo ultraliberal.
Como disse, tomei um susto com a irresponsabilidade do CNPq, até porque este artigo que você, leitor, acaba de ler, também ia pro Lattes!
Flávio Brayner, professor da UFPE
*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC