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Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire: uma obra do exílio

"Em releitura recente que fiz da Pedagogia do Oprimido, escrita por Paulo Freire em 1968 quando estava exilado no Chile, chamou-me a atenção um aspecto que passara desapercebido ao longo de toda minha vida de professor de Filosofia da Educação". Leia a opinião de Flávio Brayner

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FLÁVIO BRAYNER

Publicado em 10/08/2021 às 6:07
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Em releitura recente que fiz da "Pedagogia do Oprimido", escrita por Paulo Freire em 1968 quando estava exilado no Chile, chamou-me a atenção um aspecto que passara desapercebido ao longo de toda minha vida de professor de Filosofia da Educação: é uma OBRA DO EXÍLIO! Não quero dizer com isso que seja obra de EXILADO, de alguém sofrendo, ao longe, o destino de seu povo, sem possibilidade de volta, lamentando a injustiça de que fora vítima ou refletindo sobre a nova e difícil experiência. Nem se trata do mesmo exílio com que Theodor Adorno tratou o pensamento frankfurtiano da primeira geração: como obra de inadaptação crítica tanto às condições do fascismo europeu, quanto à "democrática" sociedade de massas americana, para onde emigraram. O caso de Freire é diferente e, aqui, meu conceito de "exílio" aproxima-se dos de E. Saïd e T. Todorov, ambos "exilados". Este conceito supõe que o exílio não é apenas um afastamento do lugar de "origem" (forçado ou voluntário), mas uma "antropologia interior": é a partir da condição de exilado que posso enxergar, à distância, minha própria cultura, as camadas de "subjetivação" de que sou feito e porque não posso enxergar tudo isto a partir do próprio lugar cultural de onde parti. É um "CONHECE-TE A TI MESMO" a partir do olhar do OUTRO.

Freire trata disto na "Pedagogia da Esperança", mas na Pedagogia do Oprimido há outra coisa em questão: ali, Freire inventa uma OUTRA LINGUAGEM PEDAGÓGICA, distante dos sociologismos e psicologismos da época, envolvendo Filosofia, Literatura e uma Teoria da Cultura: é um discurso pedagógico que se debruça sobre o próprio discurso pedagógico para, além de criticá-lo (seu autoritarismo, seu "bancarismo"), refletir sobre seu MODO DE ENUNCIAÇÃO, para o quê era preciso estar "distante" para realizá-lo, quer dizer, era preciso o exílio para perceber com olhos "estranhos" com qual matéria lingüística o discurso pedagógico é pronunciado. Isto significa que a Pedagogia do Oprimido pode ser lido como uma "METAPEDAGOGIA" em que não apenas o pedagógico reflete sobre o pedagógico, mas a linguagem pedagógica reflete sobre sua própria sintaxe.

Assim como Gilberto Freyre - na perspicaz observação de Fátima Quintas- promoveu uma renovação linguística na Sociologia fortemente ancorada nos amplos recursos literários de Freyre, o outro Freire fizera o mesmo na sua área. O problema é quando não somos mais capazes de fazer o mesmo: reinventar a linguagem da Pedagogia do Oprimido que, como qualquer linguagem, reflete e amplia o seu tempo. Porém, um outro tempo!

Flávio Brayner, professor da UFPE

 

*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

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