ARTIGO

Escrevo na véspera do 7 de setembro

"Espero a alvorada, na esperança de não ter de correr as estradas, e poder continuar sonhando. Um país só tem paz no silêncio". Leia a opinião de João Humberto Martorelli

Imagem do autor
Cadastrado por

JOÃO HUMBERTO MARTORELLI

Publicado em 09/09/2021 às 6:08 | Atualizado em 10/09/2021 às 1:19
Notícia
X

Escrevo na véspera do 7 de setembro. O dia está claro, sem nuvens, a beleza indiferente do barulho do mar. Há um vento suave, desses que fazem a gente querer balançar devagar na rede, dormitando, as criancinhas ao longe apenas murmurando explosões de alegria com as brincadeiras, suave carícia nos ouvidos quase adormecidos, ligados no entorno pela consciência onírica de se estar vivendo. A tarde resplandecente, homens e mulheres cantarolando, os seres vivos de todos os gêneros exercendo a plenitude. Sonhando, vejam só, com meus tempos de infância na zona norte, a paz antiga das ruelas da Torre, do Derby, da praça de Casa Forte, quando as pessoas podiam conversar em paz no recôndito de suas casas, nas janelas, nas calçadas, sem o barulho dos bares quebrando o equilíbrio do mundo, a Prefeitura existia, e não deixava que as pessoas fossem atormentadas, havia um pacto de silêncio e uma autoridade velando por ele. É verdade que, hoje, a Prefeitura é uma ficção, o fiscal é uma ficção, ninguém tem mais paz em suas casas, porque a autoridade não entende o silêncio como direito, ao contrário, liberou todos os decibéis, e o cidadão está ao léu, não dorme, não lê, não trabalha, não estuda, o bar e o pagode são valores maiores para a edilidade. As janelas estão fechadas, não há pessoas matutando nas calçadas. Retorno sobressaltado desse meu devaneio, não existe mais a paz das ruelas da Torre e do Derby, da praça de Casa Forte, então, nem se queira ouvir! Graças a Deus, porém, estou longe, em meu refúgio praiano, foi apenas um sonho ruim; aqui, neste meu pedaço de mundo, persiste a tarde e o silêncio, todas as coisas divinamente naturais, diria Gide. As mentes das pessoas reais, constato, porém, quem diria, estão enevoadas. Todos apavorados, querendo resolver tudo hoje, como se amanhã fosse o último dia dos tempos. É óbvio que existe um medo abrangente, cruel, atrapalhando o dia lindo, querendo conspurcar o amanhã. Procuro afastar a energia negativa. Penso que a confusão não passa da obra de um demente, não um demente momentâneo como eu estou agora, atordoado pela simplicidade da praia, dos corpos, da luz, um demente de pálpebras pesadas, mas um demente definitivo, aquele de comportamento inusual que aparenta ou sugere loucura, insensatez, doidice, parvoíce, o desmiolado, o lunático, que mais poderia dizer do pobre coitado?! Ele e sua legião de dementes terão corroído o amanhã, e, quando este pedaço de reflexão for publicado, lançado as trevas - pior, o barulho dos bares e dos pagodes - no dia? Será este artigo publicado? A nação terá direito a dias serenos? Fico estendido, até à embriaguez. Espero a alvorada, na esperança de não ter de correr as estradas, e poder continuar sonhando. Um país só tem paz no silêncio.

João Humberto Martorelli, advogado

 

*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

 

Tags

Autor