ARTIGO

Fuga em 'Os Frutos da Terra', de André Gide

"Muitas vezes em minha vida, voltei a este livro. É sempre uma mistura surreal de poesia, política e emoções das mais singelas às complexa". Leia o artigo de João Humberto Martorelli

Imagem do autor
Cadastrado por

JOÃO HUMBERTO MARTORELLI

Publicado em 23/09/2021 às 6:00 | Atualizado em 23/09/2021 às 6:43
Notícia
X

Tudo que é real me espanta. Desconecto-me da vergonha, do embaraço e da indignação com a pizza na rua transformada em quadrinhos. O ambiente vai de tragédia a pastelão em um clique. É desumano, burro, irracional. Fuga em André Gide, Os Frutos da Terra, misturo-me ao ambiente, ao fervor, ao sentido de viver: Não sei se reclamava a vida, antes de ser; porém agora que vivo, tudo me é devido. Eu reconheço a maldade, mas não a compreendo. Quando ela se aproxima, meu ser cria automática casca protetora, é um instinto, percorro rios e me lanço em cordilheiras, nadando, correndo, à procura ora de abrigo, ora de ar. Meu corpo e minha mente ficam firmes, frios, principalmente se ela ameaça a mim ou aos meus, a alma é que se vai. Pergunto-me quando e onde a reconheci pela primeira vez, não sei a resposta. Gide: Há na terra tão grande ror de misérias, desesperos, embaraços e horrores, que o homem feliz não pode pensar nisso sem se envergonhar de sua felicidade. No entanto, nada pode fazer pela felicidade de outrem, quem não sabe ser feliz ele próprio. Odiosa é toda felicidade que se obtém a expensas de outrem ou mediante bens que o privam. Um passo a mais e caímos na trágica questão social. Todos os argumentos de minha razão não me deterão no declive do comunismo. E aqui, subitamente, ele explica, quanta alegria, em uma nota ao pé da página: Nesse declive que me parece um aclive, minha razão alcançou meu coração. Que digo? Minha razão aí hoje o precede. E se por vezes sofro com ver certos comunistas serem apenas teoristas, parece-me hoje não menos grave erro que tende a fazer do comunismo uma questão de sentimento. Eu já vivi o fervor das aguardentes, e entendo a perda absoluta da consciência do entorno. A memória não traz boas recordações, e traz, para aqueles que romantizam o descontrole dos pensamentos, a conversa sem rumo, o corpo acelerado, os nervos atingidos, a náusea e, por fim, a desonra como prêmio a tudo isso. Gide: Admirava no Evangelho, e não acabei de admirar, um esforço sobre-humano para a alegria. A primeira palavra de Cristo que nos é referida: Felizes... Seu primeiro milagre, a metamorfose da água em vinho. (o verdadeiro cristão é aquele a quem basta, para que se embriague, a água pura. É nele próprio que se repete o milagre de Caná). Suleika! Por vós parei de beber o vinho que me oferecia o copeiro. Muitas vezes em minha vida, voltei a este livro. É sempre uma mistura surreal de poesia, política e emoções das mais singelas às complexas. Se não paro, e não volto, sobrevém o temor do vazio diante de tanta miséria, burrice, incompetência, insensibilidade, desumanidade. Ele preenche as insônias. Que antecedem a eternidade de repouso. Morreremos, como quem se despe para dormir.

João Humberto Martorelli, advogado

 

*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

 

Tags

Autor