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Em dias de pandemia, a sensação é de que o mundo parou

"O silêncio, sem dúvida, me auxiliará na hermenêutica ontológica. Fecho os olhos, entrego-me ao abstrato e eis-me cada vez mais inocente". Leia o texto de Fátima Quintas

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FÁTIMA QUINTAS

Publicado em 03/11/2021 às 6:06
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Em dias de pandemia, a sensação é de que o mundo parou. Ledo engano. Ando de um lado para o outro, leio, avisto a paisagem pela janela, os carros passam, o vento açoita o cabelo, cresce o impulso de que preciso sair para renovar-me. Andarei sem destino, à procura de alguma coisa que não sei o que é. Ainda bem que os pensamentos se agitam enquanto os passos continuam lentos. Olho para o relógio e não me preocupo com os segundos. Consigo enganar-me? Horas, minutos e instantes estão sempre ao meu lado, como se o espaço e a evolução temporal jamais me abandonassem. Sequer consigo me desligar do contexto que me cerca. Entre o que habita lá dentro da alma e o derredor, instala-se uma desconhecida cumplicidade: aliança que jamais se anula. Afinal, viver é recolher os apelos interiores e exteriores em uma sintonia de difícil conjugação. Moro entre o âmago do eu e as incógnitas para além de mim. Jamais me desligo dos rodeios que circulam. Afligem-me tanto quanto alertam diante dos paradoxos do espelho.

Há uma simbiose permanente entre o que sou e o que gostaria de ser. Terei capacidade de definir o que acabei de escrever? Claro que não. Nada mais difícil do que entender a multiplicidade do nosso querer. Afloram tantas ideias que penso sempre na incapacidade de armazená-las em algum lugar. Recolho-me no intuito de alguma descoberta, entretanto, estarei sempre no dilema do sim e do não. Há milhares de perspectivas no rodeio da vida. Ora me lanço para frente, ora me lanço para os lados. E, no entanto, sou incapaz de acertar os passos no próprio corredor da minha casa. Ando à toa, como se o vento me conduzisse a paisagens as mais diversas. A reflexão, contudo, se traduz em um idealismo que me agrada. Não desisto das inúmeras tentativas de explorar-me. A vontade é tão imperativa que, por vezes, canso diante do impossível diálogo.

Somos todos iguais na pluralidade dos caminhos. De nada adianta fingir, os encontros e desencontros revelam-se a toda hora. Basta acordar para a consciência se instalar. Entre o sono e a realidade, eclode um abismo de diversidades. E os apelos interrogativos permanecem. Nunca me basto. Aí reside o núcleo das indagações. Moro para além de mim e desconheço-me por completo. Todavia, não estanco os dilemas que me cercam. Ainda bem. Somente assim poderei dilatar os enigmas que se tornam cada vez mais complexos. Melhor não dizer nada. O silêncio, sem dúvida, me auxiliará na hermenêutica ontológica. Fecho os olhos, entrego-me ao abstrato e eis-me cada vez mais inocente.

Fátima Quintas, da Academia Pernambucana de Letras

 

*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

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