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Estarei sempre retomando o passado para viver o presente

"Estarei sempre retomando o passado para viver o presente com o mesmo vigor dos anos acumulados. Que dia é hoje?"

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FÁTIMA QUINTAS

Publicado em 24/11/2021 às 6:00
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Caminhar simboliza um ato de relevância para a humanidade. As estradas se multiplicam à medida que os anos avançam. Difícil é escolher a rota e selecionar a hora certa. Quando menina, gostava de correr e a brincadeira preferida era vencer a batalha da chegada em primeiro lugar. Havia no quintal um longo corredor de terra maciça, areia escura, grossa, úmida — e o imenso desejo de superar as batalhas aflorava. Às vezes ganhava, quase sempre perdia em face da velocidade do prosseguir. Magrinha, tímida, discreta, jamais ousava acelerar o passo; a irmã, mais robusta e atrevida, vencia o torneio. Desde então, a simbologia do caminhar se instalou na mente como um ato virtuoso, a aplaudir os vencedores com entusiasmo.

No atual apartamento, há um longo corredor e, sempre que o percorro, as lembranças da meninice afloram. A mente retorna ao que antes me parecia tão jocoso. Amei o avançar sem perspectivas, como se a ida até o ponto da vitória satisfizesse. E o sucesso da chegada me trazia ânimos indescritíveis. Jamais duvidei da necessidade de ir adiante.

Reavivo o fato porque há pouco avistei crianças no jardim enfrentando a mesma batalha. E a mente recordou. Como é complexo entender a temporalidade! Creio que nunca conseguirei absorvê-la. Definições não existem e fujo de todas. A diversidade do humano vai muito além de qualquer conceito. Quantas interrogações surgem e ressurgem em um só instante! Escrever me recorda as corridas de ontem. Ato de extrema singularidade, um desafio em busca de palavras que nem sempre correspondem aos impulsos inconscientes e, até mesmo, conscientes. Que saberei da vida para tentar explicá-la? Nada. Absolutamente nada.

As remotas corridas retomam a sua imagem. Semelhanças me confundem. Entre um passo e outro, despontam anseios, como se o initeligível alcançasse a poderosa força do inexplicável. Os anos se acumularam, mas as corridas nunca me deixaram em paz. E, agora, sequer sou capaz de entendê-las. Busco o impossível. Que a interioridade se conforme com as inúteis respostas. Melhor esquecer as interjeições e voltar a correr com o mesmo ânimo infantil. Mudaram as circunstâncias, não mudaram os fatos. Estarei sempre retomando o passado para viver o presente com o mesmo vigor dos anos acumulados. Que dia é hoje?

Fátima Quintas, da Academia Pernambucana de Letras

 

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