OPINIÃO

Acho que hoje eu compreendo melhor aquela "loucura" de Nietzsche

Confesso que nunca havia dado importância àquela passagem da vida de Nietzsche em que ele abraça e pede desculpas a um cavalo barbaramente açoitado pelo seu dono e que assinala o início de sua "loucura"

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FLÁVIO BRAYNER

Publicado em 30/11/2021 às 6:14
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Na tese de doutorado de Adalgiza Leão, que orientei na UFPE, havia uma foto que nunca me saiu da cabeça: a de uma índia da etnia Awa-Guajá agachada em meio ao pátio de sua aldeia, tendo no colo seu filhinho e dando de mamar a um... porquinho espinho! A legenda da foto (de Pisco Del Gaiso, premiadíssima!) esclarece que nessa aldeia os animaizinhos que ficam órfãos são adotados pela tribo como se fossem filhos!

Boa parte da minha geração não foi entusiasta das questões ambientais, muito menos discutiu, não digo a "racionalidade" humana, mas uma nova "animalidade" humana, até porque estávamos mais preocupados com "revolução social", com "consciência histórica", com "politização"..., e aquilo que chamávamos de "Natureza" não passava de um quadro geográfico em que a mão do Homo Faber deveria imprimir sua marca transformadora através das forças produtivas: a Natureza deixara há muito de ser "Criação" para se tornar campo de ação da técnica e da ciência (aliás, desde a expulsão do paraíso que estamos autorizados a mexer na "Criação"!). Ninguém naquela época discordaria da divisa de Bacon: "Devemos torturar a Natureza até que ela revele todos os seus segredos". Demoramos muito para perceber o caráter "antropológico" da técnica (Heidegger) como "razão instrumental". Até que o século XX mostrou, através do "desastre", que a Natureza era um "grito de dor" (Adorno) e que as forças produtivas não nos libertariam.

Aliás, confesso que nunca havia dado importância àquela passagem da vida de Nietzsche em que ele abraça e pede desculpas a um cavalo barbaramente açoitado pelo seu dono e que assinala o início de sua "loucura": para mim era só o efeito da sífilis! Não havia este tipo de sensibilidade em minha geração, a não ser entre grupos "neo-rousseaunianos" (Hippies) que nós desprezávamos como "alienados", mas invejávamos pelo exercício do amor livre: o desejo queria a Califórnia, a razão queria Moscou! Até o dia em que me deparei com aquela fotografia. O problema é que ela interroga o binarismo Natureza-Cultura: povos com pouquíssima "tecnologia", uma profunda integração mulher-natureza, um indiozinho que não se assusta com seu "irmãozinho" órfão, um porquinho que encontrou uma mãe e um irmão e não está mais abandonado e sozinho! E uma mãe que não vê mais diferença entre aqueles dois seres, ambos precisando exatamente do mesmo afeto e recebendo de volta a resposta materna silenciosa que todos nós pedimos e esperamos!

Acho que hoje eu compreendo melhor aquela "loucura" de Nietzsche!

Flávio Brayner, professor titular da UFPE

 

*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

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