ARTIGO

A passagem do dia para a noite

"Durante o lusco-fusco, bate certa nostalgia e uma inexplicável ponta de melancolia que só se dissipam com o clarão da lua cheia e o brilho cintilante das primeiras estrelas, na constelação azul do céu"; Leia o artigo de Arthur Carvalho

ARTHUR CARVALHO
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Publicado em 01/12/2021 às 6:18
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Sempre que contava uma história, um amigo meu começava dizendo "Ao cair da tarde..." - e nunca me explicou o porquê disto. Tudo na vida tem um motivo e acho que o cair da tarde exercia certa influência nele e, reparando bem, a passagem do dia para a noite mexe com nosso organismo. Quem está doente, piora ao crepúsculo - podem consultar o médico. A febre eleva-se um pouco, os batimentos cardíacos aceleram e sentimos ligeiro desconforto.

Frequento uma pracinha no Rosarinho. Conforme o diminutivo acima, trata-se de praça pequena, arborizada, com seis bancos de madeira e escorregos para crianças. Dou uma voltinha nela, caminhando, depois sento num banco para apreciar o movimento. Com o tempo, vai chegando a meninada com suas mães e babás. São crianças novinhas que logo se tornam amigas e começam a brincar, subindo e deslizando dos brinquedos, sob o olhar atento de um pobre, solitário e manso morador do local que não incomoda ninguém.

Numa de suas calçadas, armam trailers com espetinho, sarapatel e feijoada. Os coroas tomam suas cervejinhas geladas, com tira gosto ao ar livre, em mesinhas e cadeiras em animados papos. Ao entardecer, os sairás verdes, coleiros e papa capins se recolhem aos ninhos dos sapotizeiros e cajueiros para dormir agasalhados do vento frio. Agora entendo melhor a frase "ao cair da tarde" do saudoso Álvaro Silva Oliveira Filho. Até aquela hora, o pássaro que conseguiu se alimentar encheu o papo e vai dormir tranquilo. Quem não conseguiu, dorme com fome. Amanhã, é outro dia, dependendo do sol, da chuva, do badoque e alçapão dos moleques.

Admirando o sabiá-gongá, que belisca a manga rosa madura, galho mais alto da mangueira, recordo os versos nostálgicos de Gonçalves Dias: "Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá. As aves, que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá", que traduzem a saudade pungente da pátria distante. E penso no mistério da poesia, de que fala Rubem Braga. O fato de o sabiá não cantar em palmeira, pois palmeira não dá fruto, não turva o lirismo evocativo e a beleza plástica do poema do grande vate indianista.

A verdade é que ninguém é capaz de fixar, com exatidão, o momento em que o dia cede seus derradeiros e tênues raios de luz à penumbra da noite que se aproxima lenta, silente e sorrateira, com suas imprevisíveis e inquietantes surpresas. Durante o lusco-fusco, bate certa nostalgia e uma inexplicável ponta de melancolia que só se dissipam com o clarão da lua cheia e o brilho cintilante das primeiras estrelas, na constelação azul do céu.

Arthur Carvalho, Academia Pernambucana de Letras

 *Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

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