Opinião

Lobo em pele de cordeiro

"Agora mesmo assistimos a possibilidade de o Congresso Nacional institucionalizar um calote a parcela considerável da população brasileira que aguarda anos e até décadas para o recebimento de créditos devidos pelo Poder Público". Leia a opinião de Bruno Baptista

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BRUNO BAPTISTA

Publicado em 06/12/2021 às 6:40
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Cuidado com os falsos profetas, que vêm até vós vestidos como ovelhas, mas, interiormente, são lobos devoradores". Esta parábola bíblica, contida em Mateus, 7:15, nos mostra que todos os dias enfrentamos pessoas e circunstâncias que, apresentadas por um bom discurso, parecem ser positivas, mas trazem na realidade uma maldade embutida. Agora mesmo assistimos a possibilidade de o Congresso Nacional institucionalizar um calote a parcela considerável da população brasileira que aguarda anos e até décadas para o recebimento de créditos devidos pelo Poder Público. Refiro-me à Proposta de Emenda Constitucional 23/2021, a PEC dos Precatórios, que na última quinta-feira foi aprovada pelo Senado Federal, devendo retornar à Câmara dos Deputados para apreciação dos pontos modificados.

O disfarce, a pele de cordeiro, está na "criação" de uma folga fiscal para a instituição do programa Auxílio Brasil. O lobo está na caridade com o chapéu alheio: o uso de recursos de credores de dívidas referentes a condenações judiciais transitadas em julgado para custear o programa social. Mais que um calote, trata-se de um desvirtuamento no cumprimento das decisões judiciais, ao oficializar o termo popular "devo, não nego; pago quando puder".

Aqui, é importante ressaltar: a OAB Pernambuco e, creio, toda a sociedade civil, são absolutamente favoráveis a um programa social robusto, que atenda dignamente a parcela mais vulnerável da nossa população, que sofre ainda mais com as crises sanitárias e econômicas. Isso é indiscutível.

A crítica está na forma, ao eternizar o tempo de espera de quem possui os seus créditos para receber, em boa parte idosos, pessoas com deficiência ou doenças graves ou até mesmo empresas que geram empregos. Na realidade, é difícil até explicar para juristas estrangeiros como funciona a sistemática dos precatórios. Nos países onde os privilégios (necessários) do Estado possuem limites razoáveis, a lógica é: se o Poder Público foi condenado a pagar, deve fazê-lo imediatamente, como ocorre com qualquer pessoa física ou jurídica. Mas aqui não.

Neste tema, é importante lembrar: o Supremo Tribunal Federal, ao julgar as ADIs 4.357 e 4.425, considerou que a moratória para quitação de precatórios viola diversos princípios constitucionais, tais como o da separação de Poderes, o da isonomia, a da razoável duração do processo, bem como o direito adquirido e à coisa julgada, o direito de propriedade, a segurança jurídica e a moralidade administrativa.

A OAB tem se manifestado reiteradamente contra a PEC 23/2021, já que entendemos que a solução para o caso não está em obstaculizar o recebimento de recursos por quem já espera há anos para receber seus créditos determinados pela Justiça, mas sim em rever as prioridades no orçamento público para prestigiar todos os que realmente esperam e precisam do apoio do Estado. Que possamos desmascarar os lobos da vida real, retirando as peles de cordeiros, para enfrentá-los da forma adequada.

Bruno Baptista, Advogado e Presidente da OAB-PE

*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

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