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Sobre músicas e amores

"O leitor certamente concordará que há sempre um 'fundo musical' para cada amor de nossas vidas". Leia o artigo de Flávio Brayner

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FLÁVIO BRAYNER

Publicado em 14/12/2021 às 6:06
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Como historiador, eu me acostumei com a divisão da história ocidental em "Idade Antiga, Média, Moderna, Contemporânea"..., cada uma seccionada por um evento: invasão de Roma pelos Ostrogodos, tomada de Constantinopla, Revolução Francesa. Mas, depois da "Microhistória", da História Cultural ou das Mentalidades preocupadas com eventos cotidianos, subjetivos, afetivos, singulares, eu fiquei me perguntando em quantas "idades" minha vida pessoal é dividida e com que critérios eu o faço. Não estou falando das etapas do amadurecimento (infância, adolescência, maturidade, velhice), falo de outra coisa!

Ouço música com freqüência, deitado na minha rede macunaímica, e num destes "zapping's" esbarrei com John Barry tocando Midnight Cowboy na sua harmônica, que ouvi pela primeira vez ao ver o filme Perdidos na Noite numa longínqua cidade do interior em 1974 e, ali, eu conheci minha primeira namorada. Fiquei pensando se poderia "dividir" minha vida segundo um duplo critério, do AMOR e da MÚSICA a que ele corresponde! O leitor certamente concordará que há sempre um "fundo musical" para cada amor de nossas vidas: Fulaninha(o) tal música; Cicraninha(o) tal outra... A playlist pode ser longa, claro, em função do, digamos, ativismo ou pluralismo amoroso do(a) leitor(a)! Parece que temos necessidade de dividir o tempo, seja ele coletivo-histórico, seja individual-subjetivo sem o quê perdemos a sensação de estarmos "progredindo" (da barbárie para a civilização, da criancice para a experiência, ou como se meus amores primeiros fossem mais imaturos que os últimos), produzindo a ilusão de que no "final" há algo que nos recompensará, como se fôssemos todos vítimas e cúmplices de uma teleologia. Por exemplo: a música que marca minha relação com Gil é "Todo Sentimento" (de Chico e Cristóvam Bastos) e ao ouvi-la tenho sempre a impressão de que cheguei no "TEMPO DA DELICADEZA"!

É possível que eu esteja errado, que a humanidade seja marcada por continuidades e não por rupturas, que os amores de nossas vidas não tenham "trilha sonora", que tudo não passe de uma fantasia projetada sobre o passado para justificar o presente, e que, talvez, os Bárbaros, que findaram o Mundo Antigo, sempre estiveram entre nós; que John Barry nunca deixará de tocar Midnight Cowboy e que o "tempo da delicadeza" seja minha última "idade". Vai ver que "O passado nunca está morto. Nem sequer é passado!" (W. Faulkner).

Flávio Brayner, professor titular da UFPE

 

*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

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