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A mãe dizia que não transformasse as ilusões em gavetas fechadas

"Assim procedi em períodos longínquos. Que saudade dessa franca pulsão!". Leia o texto de Fátima Quintas

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FÁTIMA QUINTAS

Publicado em 22/12/2021 às 6:07
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Rebusquei em todos os papeis. O móvel discreto, a chave o abriu com dificuldade. Onde estaria o bilhete que escrevi e um dia guardei no esconderijo que agora se encontra à minha frente? Que destino levou o rascunho secreto que eu mesma ali deixei? Era um sábado, precisamente à tarde. Todos haviam saído, fiquei solitária e resolvi externar os sentimentos em uma folha de papel tradicional. Não retive a emoção, deixei que as palavras expressassem a solidão que se abatia sobre o Eu. Havia completado quatorze anos e a repressão parecia distante das minhas intenções. Quantas vezes revelei-me nas palavras que escrevi?! Tudo parecia livre para lançar-me sem restrições. Da primeira a última letra, deixei-me explodir à vontade. Emerge um período no decorrer da vida que os limites não existem ou se existem acabam por se perder nos ímpetos para além da nossa intenção.

A mãe dizia que não transformasse as ilusões em gavetas fechadas. Assim procedi em períodos longínquos. Que saudade dessa franca pulsão! Fui livre durante os primeiros anos da adolescência. Poucos. Logo, a racionalidade de mim se apossou, entremeando o dizer. Revelo, entretanto, que pouco a pouco consegui libertar-me, adotando uma letra quase sem censura. E hoje me vejo mais ousada que em momentos outros. Aprendi a confessar-me. Às vezes, receio fazê-lo, mas vou adiante. Impossível adotar expressões completamente desprovidas de coerção. A juventude me ensinou a identificar-me em completude. Emergiu, todavia, um receio proveniente da própria liberdade. Afinal, sou o que a alma permite. E são tantos os retraimentos!

A vida recomeça a cada dia. Um despertar que emana da interioridade. Vou e volto em ritmo desigual. Abraço as oposições com o prazer de quem entende o Ir e o Vir. Nada vale esconder-me por traz da cortina, ainda que, vez por outra, necessite de bravos recolhimentos. A palavra escrita, sem dúvida, detém caminhos de libertação, por necessitar igualmente de sábias ocultações. Escrever é um ato extremamente difícil. Em todos os momentos, urge pensar e repensar os desejos que nos cercam. Tenho dificuldade de escamotear verdades e inverdades. Quantas vezes recuo no ato da explanação? Ainda bem que aprendi a confessar-me por inteiro. Será mesmo?

Fátima Quintas, da Academia Pernambucana de Letras

 

*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

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