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O Natal e as saudades dos meus pais

"Sinceramente, no Natal, penso mais nos meus pais do que no nascimento de Jesus. Não é por querer, não é blasfêmia, é saudade mesmo. Não exerço domínio sobre ela, não procuro, só sinto". Leia o artigo de Sérgio Gondim

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SÉRGIO GONDIM

Publicado em 24/12/2021 às 6:10
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Sinceramente, no Natal, penso mais nos meus pais do que no nascimento de Jesus. Não é por querer, não é blasfêmia, é saudade mesmo. Não exerço domínio sobre ela, não procuro, só sinto.

Sinto a presença da minha mãe, carinho em todas as horas, o compromisso com a resolução dos problemas dos seus pacientes, as vezes mais do que com os dos filhos! No cantinho dela, sem chamar atenção de ninguém, só o telescópio superior de quem enxerga as virtudes, sabe o que ela fez por aquelas crianças.

Do meu pai, os cascudos e as conversas. Os primeiros, tento esquecer, até porque alguns foram injustos, mas ainda sonho com as conversas. Chego a anotá-las no meio da noite, antes do apagão do sono. Na última, me disse: você faz pouca caridade "seu Sérgio". Um conselho com mais força do que o de muita religião. Obedece quem tem juízo.

Em outro, relembrou o momento remoto em que fui comunicar a decisão de não participar dos atos da minha formatura em medicina. De saída, foi logo dizendo que apoiava porque certamente haveria um motivo justo, mas sei que também simpatizou com a ideia por achar as solenidades muito chatas. Concordou em não ver o meu nome na placa, nem ir à festa de formatura, em solidariedade aos colegas que foram excluídos por falta de condições financeiras. Um absurdo que Jesus também reprovaria, disse.

Teve um que quase virava pesadelo. Quando soube que não me casaria na igreja, diagnosticou que seria pecado e teve dúvida se deveria abençoar. Consultou o padre, o bispo, o arcebispo, ascendendo na hierarquia da igreja católica que definia o casamento só no civil como um pecado. Antes de consultar o papa, decidiu ouvir o Frei Romeu Perea, filósofo com quem costumava conversar e que, do alto de sua sabedoria, numa clara manifestação de subversão aos dogmas da igreja, interpretando livremente os parágrafos da constituição religiosa, aconselhou: comparecer ao casamento do seu filho é um ato de amor e nenhum ato de amor é pecado. Compareceu. De cara amarrada como quem acha que está pecando, mas foi. Anos depois anotei quando disse em elogio: essa tua mulher, meu filho, nem precisa ser batizada. No sonho, aparecia agoniado, batendo nas portas, pedindo permissão para pecar.

Jesus não ficará com ciúmes por me lembrar mais dos santos de casa do que dele no dia do seu aniversário, além de tudo estará muito ocupado com tanta gente lhe parabenizando.

Já disse aqui uma vez que, pouco antes de morrer, meu pai me mandou escrever. Depois de revisar os textos e pedir a opinião da minha mãe, mesmo sabendo que ela já não o ouvia mais, determinou que os publicasse. Deve ser essa a razão para continuar publicando nesse JC.

Um Natal conectado com os seus princípios, para todos.

Sérgio Gondim, médico

 

*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

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