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Filme 'Não Olhe para Cima' exige um momento de reflexão

"Não precisamos 'olhar para cima' para vislumbrar um desastre iminente". Leia o artigo de Flávio Brayner

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FLÁVIO BRAYNER

Publicado em 11/01/2022 às 6:12
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Assisti ao filme "Não Olhe para Cima", um retrato cínico, irônico, cômico e trágico dos tempos atuais, e acho que esse filme exige um momento de reflexão, sobretudo a respeito da descrença que grupos poderosíssimos querem impor às instituições, levando o planeta àquele desastre final, em que um asteróide se choca com a Terra. Pelo menos três instituições: a Ciência, a Política e a Mídia (imprensa e redes sociais)! O que esperamos (ou esperávamos!) delas? Da Ciência esperamos um tipo de verdade, a "verdade material" (o conteúdo do intelecto corresponde ao que as coisas "são"), diferente da verdade da metafísica ou da religião; da Política, em sua versão moderna, esperamos o bom governo dos homens, cada um com seus interesses, e como construir uma "sociedade civil" regulada pela lei e legitimada pelo "uso público da razão" (liberdade de expressão); da Mídia esperamos a apresentação minimamente objetiva dos fatos (sempre sujeitos a múltiplas interpretações), mantendo-nos "informados". Todas estas instituições trabalham com o TEMPO: a Ciência tenta, a partir de causas objetivas, deduzir suas consequências futuras e nos fornecer saber e poder; a Política espera realizar, finalmente, a "amizade entre os homens" (Aristóteles), assegurar seu bem-estar ou construir a "boa sociedade" (utopia); a Mídia nos diz que, com as informações corretas, podemos julgar melhor e avaliar as conseqüências (futuras) de nossas decisões, inclusive científicas e políticas.

O descrédito promovido sobre estas instituições (a Ciência não produz certeza, a Política é o refúgio dos corruptos, a Mídia é manipulada pelos grandes grupos financeiros) produz uma desastrosa relação com o tempo: há os que NÃO OLHAM PARA FENTE e tentam buscar em instituições ilusoriamente sólidas (família, pátria, religião) as respostas às indagações do presente, e há os que NEM OLHAM PARA FRENTE NEM PARA TRÁS: não acreditam mais que nossas utopias serão realizadas nem pela ciência nem pela política, nem vêem mais no passado uma reserva de experiência social como matéria de reflexão. Resta o PRESENTE (não a CONTEMPORANEIDADE como "época que se dobra criticamente sobre si mesma", como sugere Agamben), mas um presente vivido como consumo de si e dos outros pelas redes sociais, a felicidade privada vivida como prazer sensual e consumista, a relação com o outro vivida como narcisismo mutualista e voyeurismo generalizado.

Não precisamos "olhar para cima" para vislumbrar um desastre iminente. Aliás, também NÃO OLHE PARA DENTRO: o "meteoro" está em nós!

Flávio Brayner, UFPE

 

*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC


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