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A diferença entre a proibição bibliográfica e a musical

"Na primeira você se arriscava a comparecer ao Tribunal do Santo Ofício; a segunda é o 'Tribunal dos Direitos Identitários' interiorizado". Leia o artigo de Flávio Brayner

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FLÁVIO BRAYNER

Publicado em 18/01/2022 às 6:05
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Imagine, leitor(a), uma época em que não se podia ler o que se desejasse porque uma instituição - a Igreja- havia listado as obras proibidas de leitura! Pois logo após o Concílio de Trento (1546) e até 1966 (!), existiu uma lista de livros proibidos, o INDEX LIBRORUM PROHIBITORUM. Na lista estavam Galileu, Maquiavel, Descartes, Voltaire, Sartre, Kant, Flaubert, Henry Miller..., quer dizer, praticamente toda inteligência que produziu a "Modernidade"! Temos, assim, o direito de desconfiar de que a religião institucional é, no fundo, um projeto de "direção de consciência" e não é à toa que Voltaire queria "écraser l'infâme" (esmagar o excesso de zelo religioso!). Claro que mais de quatro séculos de proibição estimularam a leitura clandestina daqueles livros, como sugere Martin Puchner em o "O Mundo da Escrita".

Agora imagine, leitor(a), que não haja nenhum INDEX, nenhuma instituição, nenhuma proibição explícita, mas se você cantar certas músicas estará sujeito não à execração pública, mas à censura implacável de grupos de ativismo identitário, para as quais você precisa estar alerta. Para me precaver elaborei meu próprio INDEX MUSICARUM PROHIBITORUM, com músicas cujas letras ferem aquela sensibilidade identitária e as razões de sua interdição. Eis algumas: "OLHA A CABELEIRA DO ZEZÉ" (David Brasil): homofobia! "AMÉLIA" (Ataulfo): inferiorização moral da mulher; NEGA DO CABELO DURO (Luis Caldas): preconceito étnico-racial; O TEU CABELO NÃO NEGA (Lamartine Babo): mesma coisa; PAI FRANCISCO ENTROU NA RODA (domínio comum): homofobia; PARE DE TOMAR A PÍLULA (Odair José): repressão ao direito da mulher de dispor do próprio corpo; INDIO QUER APITO (Haroldo Lobo): preconceito contra os povos originários; A VOLTA DO BOÊMIO (Nélson Gonçalves): aprisionamento doméstico da mulher pra cair na safadeza; TELMA EU NÃO SOU GAY (Léo Jaime e B. Anderson): deboche com a homoafetividade; SE ACASO VOCÊ CHEGASSE (Lupicínio): subalternização da mulher, reduzida aos trabalhos caseiros e ao sexo.

A diferença entre as duas proibições (a bibliográfica e a musical) é o caráter institucional da primeira (e seu viés repressivo) e o caráter difuso da segunda (e seu intento "libertador"): na primeira você se arriscava a comparecer ao Tribunal do Santo Ofício; a segunda é o "Tribunal dos Direitos Identitários" interiorizado. No fundo, todo "projeto de subjetivação", opressivo ou libertador, passa pela linguagem. A questão é saber se a "descolonização" da linguagem não termina como direção de consciência! E isso não tem nada a ver com pluralismo cultural nem com respeito à diferença...

Flávio Brayner, professor da UFPE

 

*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC

 

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