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As sobras de tudo que chamam lar

Artigo da advogada Gisele Martorelli, especialista em Direito da Família, sobre o impasse gerado por casais nas separações

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GISELE MARTORELLI

Publicado em 20/01/2022 às 7:00
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Na canção Trocando em Miúdos, Chico Buarque e seu onipresente parceiro Francis Hime tocam numa questão sensível aos que atravessam o fim de um casamento: o afastamento de um dos cônjuges do lar conjugal. Os autores expressam em versos a dor de quem precisa deixar a residência, até então compartilhada com o ser amado, levando consigo apenas “as sobras de tudo que chamam lar”. A composição despeja lirismo, ainda, ao dar conta da divisão do patrimônio, seja ele composto por valores reais e pecuniários, como um apartamento, ou simbólicos e afetivos, como um livro: “Devolva o Neruda que você me tomou. E nunca leu”.

A realidade está bem distante do personagem representado nessa letra, que bate o portão sem fazer alarde, levando consigo apenas a carteira de identidade. Em grande parte dos casos que chegam à mesa do juiz familiarista, nenhum dos envolvidos deseja “abandonar” espontaneamente o lugar no qual investiu dinheiro e sonhos, não necessariamente nessa ordem. Quando ambos fincam pé para permanecerem no território construído em comum é que se dá o impasse, e se ele não é resolvido através da negociação, mediada pelos operadores do Direito, vai parar no Judiciário.

Mas sobre qual critério um magistrado fundamenta a decisão de afastar um ou outro da residência que pertencia equitativamente ao ex-casal, especialmente quando uma das partes lança mão do instituto jurídico da Separação de Corpos? Não interessa ao Direito de Família, como no passado, pesquisar as causas da ruptura matrimonial; não há que se falar em culpa quando o amor termina. E se não há culpados, por que punir um dos cônjuges despejando-o de sua casa? Por outro lado, quando se esgota a “esperança de tudo se ajeitar”, novamente nas palavras de Chico/Hime, a coabitação, que anteriormente era sinônimo de parceria e alinhamento de ideais, vira constrangimento.

O afastamento compulsório de um dos cônjuges por decisão judicial é menos complexo quando há ocorrências que configurem ameaça à integridade física de um deles. Em casos assim, sai o agressor. Na ausência desse cenário, cada um de vários aspectos, e não apenas o fator econômico, será examinado pelo juiz em busca do “justo e razoável”. O cônjuge que fica com os filhos pode ter a preferência, ou, em caso de ausência de prole, quem tenha condições materiais e emocionais de melhor organizar outra moradia será aquele que renunciará ao espaço doméstico. Cada caso será um caso. Em comum, todos trazem “o estrago de um peito dilacerado”, sobre o qual não há cobrança que possa ser quantificada em moeda nenhuma.

Gisele Martorelli, advogada especialista em Direito de Família e Sucessões

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