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"Hoje, quando vejo a desavergonhada hipocrisia de políticos comendo buchada de bode"...

Nordestino de capital, para mim o sertão terminava em Garanhuns, quando ia aos festivais de inverno naquela cidade. Dali para diante, sertão era só de ler Graciliano Ramos, em Vidas Secas.

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OTÁVIO SANTANA DO RÊGO BARROS

Publicado em 05/02/2022 às 9:56 | Atualizado em 05/02/2022 às 9:58
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"Por favor entre, tem um cafezinho quente e uma lasca de goiabada cascão". Com esse convite fui recebido há muitos anos por um casal de idosos, em um sítio afastado na região de Serra Talhada.

Acabara de chegar da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e como chefe da logística da 10ª Brigada de Infantaria também me tornei responsável pela operação Pipa d’Água, no território sob responsabilidade da organização militar.

Nordestino de capital, para mim o sertão terminava em Garanhuns, quando ia aos festivais de inverno naquela cidade. Dali para diante, sertão era só de ler Graciliano Ramos, em Vidas Secas.
Na função, viajava mensalmente para conhecer e coordenar a distribuição de água no semiárido nordestino dos estados de Alagoas, Bahia e Pernambuco.

Nessas andanças, o que mais me impactou não foi a seca. Angustiante e impiedosa. Foi o homem e a mulher sertanejos. Foram seus valores, suas crenças e sua fé.

Entrei naquele casebre de pau-a-pique, piso de terra batida que de tão limpo parecia encerado. O quintal varrido de manhã e de tarde era delimitado por uma cerca de galhos retorcidos e arrodeado por uma plantação de palma, comida de duas cabras leiteiras que baliam e chacoalhavam o sino, em sinal de alegria pela visita.

O café, servido em copo de geleia mocotó, já estava frio, mas a goiabada compensava. Uma conversa respeitosa, cheia de citações religiosos e esperança por dias melhores nos tomou toda manhã.
Agradeci a hospitalidade e saí dali impactado. Na pick-up, ar-condicionado no ultimo número, conversei com o motorista, um soldado de Cabrobó, servindo em Petrolina. Ele me disse altivo: “Major, nosso povo é humilde, mas é educado, é honesto e tem vergonha na cara”.

Guardei aquilo. Simplicidade não é sinônimo de breguice, de falta de educação, de desleixo pessoal ou descaso com o ambiente em que se vive. O exemplo me foi claro naquele 1999.
O cidadão comum – o povo -, independente de condição social, encontra na decência individual e familiar um estímulo para a superação das dificuldades diárias. É uma força a impulsioná-los.

Hoje, quando vejo a desavergonhada hipocrisia de políticos comendo buchada de bode com cara de nojo, farofa com frango frito e outras cenas idealizadas por marqueteiros para que pareçam mais povo e conquistem votos dos humildes, lembro do velho sertanejo e sua senhora. Eles tinham vergonha na cara.
Paz e bem!

Otávio Santana do Rego Barros, general de Divisão da Reserva

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