OPINIÃO

Na minha infância, se eu chegasse com uma nota baixa em casa ficava de castigo; hoje quem vai de "castigo" é o professor, com os pais comparecendo à escola para pedir satisfações

Imaginamos que por sermos pais sabemos "naturalmente" educar nossos filhos, até porque também fomos educados como filhos e temos a lembrança dos exemplos, das ações, dos castigos, das falas corretivas, das comparações, dos projetos que eles, pais, fazem para cada um de nós, ou seja, por pior que sejam os "resultados" da "educação doméstica", nossos pais têm como atenuante o fato de que desejaram "o melhor" pra todos nós!

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FLÁVIO BRAYNER

Publicado em 23/02/2022 às 18:19 | Atualizado em 23/02/2022 às 18:19
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A curiosa ideia de que os pais não sabem mais educar os seus próprios filhos não é nova e está presente, com diferentes expressões, em Santo Agostinho, em Montaigne, em Rousseau, em Freud... Mas é, sobretudo, na Modernidade que esta idéia da negatividade (ou incompetência) educativa dos pais ganhou toda sua envergadura, na exata medida em que a educação se profissionalizou e se especializou numa instituição específica, a escola. E ao se “profissionalizar” passou a exigir não apenas “profissionais” com maestria e domínio na área, sistemas seriados que acompanhassem o progresso idade-série-conteúdo de aprendizagem, arquiteturas escolares específicas, sistemas de exames e observações sistemáticos e um certo distanciamento da vida social “lá fora”, numa reprodução espacial do modelo monástico medieval, onde reina a disciplina, a ordem, a concentração e o adestramento dos corpos (e das almas, claro!), com a criação dos Sistemas Nacionais de Ensino, após as revoluções burguesas.

Acompanha tudo isso o aparecimento da PEDAGOGIA. Embora o termo seja grego (“conduzir a criança”), sua concepção é moderna e significa que, por trás das PRÁTICAS EDUCATIVAS exercidas pelos professores na escola, deve existir uma TEORIA que informe e reflita sobre tais práticas.

Ora, é exatamente esta TEORIA que os pais não têm, ou supostamente não possuem, daí que a “incompetência” educativa dos pais está diretamente ligada à profissionalização e institucionalização escolar da educação: não é qualquer um que sabe ou pode educar qualquer outro, em qualquer tempo, em qualquer lugar. Surge assim um DISCURSO DA COMPETÊNCIA EDUCATIVA, com uma separação entre o que acontece nas relações familiares (entre pais e filhos), marcada pelo afeto, pela proteção e a escola, marcada pela universalidade da regra, a disciplina e a definição de objetivos e fins claros, e com métodos de ensino específicos: as Didáticas.
No entanto, o que eu aprendo EM CASA não é a mesma coisa que eu aprendo NA ESCOLA, e os pais não precisam ser educadores profissionais para me orientarem naquilo que chamamos, muito genericamente, de “educação doméstica”. Em casa eu aprendo as injunções “primárias” da sociabilidade, coisas como usar talheres à mesa, manter o corpo limpo de suas secreções, aprender a me vestir ou dar um laço no sapato, respeitar os mais velhos, cumprir horários (de dormir, por exemplo), falar corretamente..., com o conseqüente “direito” (ôpa!) que têm os pais de nos punir e até com violência física (eu mesmo apanhei mais do que herege em dia de procissão!): uma crença já presente na cultura hebraica de que a dor educa, o sofrimento é corretivo.
O tipo de “saber” que a casa (família) pretende que eu “interiorize” (de natureza comportamental) é diferente do saber que a escola quer que eu “aprenda” (de natureza cognitiva), embora estas duas “naturezas” possam sempre se amalgamar. A casa está preservada do olhar “de fora”, e ali habita uma penumbra que protege nossos filhos do Mundo, um Mundo que tanto pode ser destruído pelos recém-chegados quanto ser destruído por aqueles que acham que tudo começa com eles: a família nos protege da luz e da visibilidade que vem de fora, proteção necessária para que eu possa ter uma “infância”.

Já na escola, sou objeto de uma avaliação e observação sistemática, que examina minha “evolução” da infância para a maturidade, da penumbra familiar para a luz do espaço público onde exercerei funções futuras de cidadão e de trabalhador. Ali, na escola, as regras são para todos (em casa, os afetos são variáveis!) e eu preciso interiorizá-las. É exatamente no capítulo da “interiorização das regras” que recai o peso da incompetência dos pais como educadores.
Imaginamos que por sermos pais sabemos “naturalmente” educar nossos filhos, até porque também fomos educados como filhos e temos a lembrança dos exemplos, das ações, dos castigos, das falas corretivas, das comparações, dos projetos que eles, pais, fazem para cada um de nós, ou seja, por pior que sejam os “resultados” da “educação doméstica”, nossos pais têm como atenuante o fato de que desejaram “o melhor” pra todos nós!
Mas nada disso deve nos fazer esquecer que as crianças nem sempre foram vistas com bons olhos: Platão achava que delas se poderia esperar tudo, de bom e de ruim; Agostinho achava que elas eram o que se situava mais próximo do pecado original; Descartes afirmava que as crianças eram um “escândalo filosófico” (pelo fato de não possuírem uma razão já formada); Freud achava que elas eram “perversos polimorfos”! No entanto, o que precisamos reter é que criança não é igual à infância: criança sempre existiu e é uma etapa biológica da vida; infância é uma representação que fazemos da criança e ganhou corpo, como conceito, depois de Rousseau (Emílio; 1754), quando passaram a ser vistas como inexperientes, desprotegidas, imaturas, espontâneas, naturais..., portanto, uma representação distante daquela que vigorava até o século XVI, quando elas eram vistas como adultos em miniatura e não havia separação entre vida adulta e vida infantil, momento em que o infanticídio, embora punível, era amplamente tolerado e praticado (Cf; Elizabeth Badinter. Um amor conquistado. O mito do amor materno). Essa mudança na representação da criança, com a emergência do conceito de “infância”, também colocará os pais numa situação delicada.
Com o passar do tempo, aquilo que já era alvo de proteção, de cuidados especiais, um “centro de atenções”, vai fazendo emergir uma “era da criança”, como entidade dotada de direitos específicos, atenções especiais por parte do estado, pedagogias particulares, medicinas específicas (Pediatria, Puericultura), espaços privados (o quarto das crianças), surgindo, assim, um mundo particular das crianças, separado do dos adultos e que vai provocar uma verdadeira “crise de autoridade” (dos pais e professores), quando as crianças passam a reivindicar direitos, privilégios, espaços, atenções; quando as vemos como dotadas de “interesses” (os “interesses das crianças”), quando surge um mercado voltado para seus desejos (todos manipuláveis) e gozando de privilégios “democráticos” no interior da família (voz e voto em decisões que antes estavam reservadas aos adultos), e qualquer atitude mais dura ou repressiva dos pais produz sentimentos de culpa e remorso, aumentando ainda mais o espaço de manipulação afetiva dos filhos (e de culpabilização dos pais!).

Aliás, na minha infância, se eu chegasse com uma nota baixa em casa ficava de castigo; hoje quem vai de “castigo” é o professor, com os pais comparecendo à escola para pedir satisfações “pedagógicas”, como tive a oportunidade de ver na escola de meus filhos! É aqui onde entra a idéia de que “OS PAIS NÃO SABEM EDUCAR SEUS FILHOS”, terceirizando sua educação (entregue à escola) e se desresponsabilizando de coisas elementares numa formação da subjetividade.


Ora, uma época de avanço ilimitado de direitos, quer dizer, do DIREITO DE CONQUISTAR DIREITOS, às vezes com pouquíssimas alusões aos DEVERES inerentes à vida social e compartilhada - deveres como regra internalizada e como consciência ética e auto-reflexiva (e não necessariamente como ação repressiva)-, uma época também de sobrevalorização da juventude e de recusa a envelhecer; de adultos que abdicam de suas responsabilidades, ao lado de crianças que têm acesso a toda e qualquer informação antes reservadas aos mais velhos, numa época como essa, repito, abre-se um fosso geracional e, portanto, pedagógico: culpados, inseguros e desamparados, os pais de hoje precisam consultar guias espirituais, terapeutas, tarô, influencers digitais, picaretas e charlatães de toda ordem para saber – e, claro, que exagero nesta caricatura!- se seu filho de 9 anos pode ou não assistir ao canal SEX HARD AND HOT, sob pena de lhe estar violando seu DIREITO à informação e às práticas sexuais adultas que ele, Juninho, mais cedo ou mais tarde vai experimentar!
Assim como mudou a representação da criança-filho, também mudou a representação do adulto-pai: declina o ente patriarcal, autoritário, vertical, mantenedor e castrador e ascende o pai democrático, dialogante, participante e horizontal da sociedade pós-moderna; sai a criança inexperiente e imatura da modernidade rousseauniana e entra em cena a criança-cidadã, portadora de direitos e interesses próprios e fazendo parte de um mundo (o “deles!) que não tem quase nada a ver com o “nosso” (dos pais).
Sou incompetente!

Flávio Brayner, doutor e pós-doutor em Filosofia da Educação pela Universidade de Paris

 

 

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