OPINIÃO

Garrincha foi o Charles Chaplin do futebol!

Garrincha, pela sua própria origem social, sabia que a queda (seu alcoolismo e miséria material), o desespero, a desilusão estavam inscritas naquela vida dedicada a fazer rir, a ironizar a existência, a enlouquecer os "cartolas"...

Imagem do autor
Cadastrado por

FLÁVIO BRAYNER

Publicado em 12/04/2022 às 8:08 | Atualizado em 12/04/2022 às 8:08
Artigo
X

O escritor francês Michel Houellebecq acha que o homem deseja a violência e não sabe viver sem ela (”Matar os outros é excitante!”), mas, “com o consenso liberal e as guerras limitadas aos campos econômicos, precisávamos de um derivativo: penso que este derivativo já foi descoberto. É o futebol”, diz.
Gosto de ver jogos de futebol na TV, e nesta época de Copa do Mundo e com o falecimento recente da grande Elza Soares, fiquei me lembrando de Garrincha, que vi uma única vez no Maracanã, levado pelo meu cunhado Ernani Lemos, no longínquo ano de 1965. Garrincha foi o Charles Chaplin do futebol! Chaplin tentava responder, com seus filmes, a uma questão: o amor, a amizade, a generosidade, o cuidado com o outro, o riso, a simplicidade da beleza resistirão à sociedade capitalista moderna? E foi assim que ele tirou das situações mais duras e desumanas a graça, a brincadeira, a ironia sobre as pretensões e arrogâncias da vida burguesa. Garrincha (assim como o inesquecível Dadá Maravilha!) sabia que o papel do jogador era o mesmo do artista circense, popular, herdeiro da tradição picaresca: fazer rir, alegrar, retirar do cotidiano aqueles que levam uma vida triste e desesperançosa, como fizeram o bufão, o mágico, o palhaço, o malabarista... inventando novos, maravilhosos e ilusórios mundos que duram apenas o tempo de uma “função”.
Galeano (“O século do vento”) achava que “Pelé ia subir, e sabia disso. Garrincha ia cair, e não sabia disso!”. Não acho! Garrincha, pela sua própria origem social, sabia que a queda (seu alcoolismo e miséria material), o desespero, a desilusão estavam inscritas naquela vida dedicada a fazer rir, a ironizar a existência, a enlouquecer os “cartolas”: o palhaço não ri, ele mostra o que é risível na seriedade. Mas, nosso Chaplin do Futebol mostrou que a “razão-visando-resultados”, hoje dominante no futebol “pepguardiolano”, aquele da repetição exaustiva do gesto, do treino mecânico, da previsibilidade das ações, terminaria por aniquilar a beleza da ação gratuita e sem “finalidade” de um drible arlequinesco, risível e inesquecível que fazia com que, das arquibancadas, pobres torcedores desdentados e negros abrissem um largo e vingativo sorriso. Garrincha, O Improvável, mostrou, no futebol que praticava, que a técnica pode aniquilar a simples vida, e é por isso que todos nós que o vimos jogar, nos lembramos dele e rimos quando assistimos às cenas de seus dribles insanos e desorientadores. Precisamos dele porque continuamos a acreditar teimosamente, que a Arte, este drible sem finalidade, continua necessária! Penso que o “derivativo” de Houellebecq encontrava em Garrincha sua face humanizada.
(Para Geraldo Barroso, botafoguense)

Flávio Brayner , professor da UFPE

 

Tags

Autor