OPINIÃO

Carnaval é política?

O carnaval oficial, disciplinado pelas subvenções estatais e pelos patrocínios privados, belo e ordeiro, é rigidamente controlado pelos patrocinadores que determinam o roteiro, os horários e até o repertório a ser tocado.

JULIANO DOMINGUES E JAIRO CABRAL
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JULIANO DOMINGUES E JAIRO CABRAL
Publicado em 12/02/2023 às 0:00 | Atualizado em 12/02/2023 às 9:23
MARIANA GUERRA/ACERVO JC IMAGEM
Carnaval "de pedestres" no Recife Antigo - FOTO: MARIANA GUERRA/ACERVO JC IMAGEM

Tudo é política, inclusive carnaval. A confraternização entre diferentes e a quebra de hierarquias é apenas aparente, parte de uma estratégia discursiva que propaga a carnavalização como algo harmonioso. Mas não é bem assim. A festa, em verdade, explicita relações conflituosas de poder e disputas históricas da sociedade brasileira, que vão da afirmação de identidades à ocupação do espaço urbano.

A versão de carnaval enquanto festividade alegre, capaz de eliminar diferenças e estabelecer o consenso entre os extremos sociais ganha corpo e força sobretudo na década de 1920, como parte de uma leitura nacional-popular de um Brasil pacífico e democrático etnicamente. A virada de chave teórico-metodológica ocorre a partir de 1970, quando a festividade passa a ser interpretada, também, sob a perspectiva do conflito de classes e da resistência de grupos historicamente marginalizados. Assim, manifestações culturais são entendidas como luta política e carnavalizar, como exercício de poder simbólico.

Nos festejos que deram origem ao que hoje conhecemos como carnaval, os entrudos, já era possível identificar distinções de classe e a diferenciação entre a brincadeira privada, dentro de casa, e aquela que acontecia na rua, pública. Vale lembrar que o entrudo, registrado por aqui já no século XVI, é o famoso mela-mela, uma herança portuguesa de origem medieval que ocorria três dias antes da Quaresma e previa arremessos recíprocos de ovos, barro, lama, farinha, bolas cheias de água, algo muito comum no Brasil Colônia e Império.

A brincadeira era classificada como pouco civilizada pela elite conservadora, embora todos tomassem parte de alguma forma, a depender do perfil étnico e socioeconômico do grupo que promovia a farra. Havia um protocolo de exclusão e distinção, mesmo em um mela-mela, cuja interpretação pode ser feita a partir da dicotomia "da casa e da rua", uma ferramenta analítica clássica nas ciências sociais e fundamental para entender a formação do Brasil.

Na rua, brincavam principalmente os negros, dentre eles escravizados e alforriados, que faziam do espaço público seu carnaval. Ao mesmo tempo, os ambientes privados eram exclusivos da elite branca, que se divertia em um entrudo doméstico, considerado "limpo", mais civilizado, porque, entre outras características, o arremesso era de água perfumada. A festa na rua passou a ser alvo de repressão do Estado e estigmatizada pela imprensa como perigosa, selvagem e violenta, uma vez que os modelos civilizatórios a serem seguidos eram franceses e ingleses.

A mistura entre grupos só era permitida entre aqueles que se viam como iguais, de modo que havia tensão em vez de confraternização ou comunhão. Desse processo resultam os bailes em espaços fechados e, posteriormente, o uso de máscaras como um adereço capaz de expressar poder econômico e distinção social. As festas privadas a convidados passaram, posteriormente, a cobrar ingresso.

Nesses ambientes surgem os clubes de alegoria e crítica, formados por integrantes de uma elite intelectual não necessariamente popular e usados como plataforma para propagação de críticas sociais e políticas, no mais das vezes contra valores monarquistas e escravagistas. O primeiro fundado no Recife foi o Club dos Azucrins, de 1869, cujo objetivo era, daí o nome, azucrinar.

Vale lembrar que nessa época se disseminavam no Brasil as concepções de eugenia e de darwinismo social, com reflexos culturais importantes, como a desafricanização do carnaval e a exclusão de manifestações negras dos festejos. A repressão contra manifestações populares incluía principalmente o aparato jurídico-policial, com legislação que proibia batuques e apreendia instrumentos. Estavam isentos, no entanto, consertos e cantorias que ocorressem em casas de particulares. Novamente, a tensão entre o público e o privado se impunha.

Mas o carnaval popular, de rua, resistiu, graças, por exemplo, aos ranchos e os grupos de cucumbi do Rio de Janeiro, aos clubes africanos da Bahia, e aos clubes de pedestres e maracatus de Pernambuco. Aliás, o termo "pedestres" indicava um viés popular, pois informava que o percurso era feito a pé, diferentemente de outros tipos de agremiações, que se utilizam de veículos. Além disso, os nomes daqueles mais conhecidos faziam referência à classe trabalhadora, como Vassourinhas (1889), Pás (1890) e Lenhadores (1897).

No entanto, o controle do espaço público e da movimentação de agremiações e pessoas durante os dias de folia é, historicamente, um desejo do Estado e das elites que o comandam, em particular nos órgãos de planejamento e no aparelho de repressão, consorciadas com instituições da sociedade civil. A tentativa é de modelar o formato do carnaval para uma espécie de liberalização dentro do que seria tolerável, desde que respeitados os limites morais impostos por essas elites.

Um bom exemplo disso é o estatuto da Federação Carnavalesca de Pernambuco, fundada em 1935, cujo artigo 5º indica como objetivos: "Moldar o carnaval no sentido do tradicionalismo histórico e educacional, fazendo reviver costumes nossos, tipos da nossa história, fatos que nos educam". O artigo 6º diz: "Colaborar com os poderes públicos para a regulamentação e boa distribuição do trânsito, a fim de que não haja prejuízo do frevo que merece apoio, para a sua conservação típica". Apesar de mudanças ocorridas com o passar dos anos, permanece a tentativa de apropriação das manifestações populares como instrumentos de legitimação conservadora e financeiramente rentáveis.

O carnaval oficial, disciplinado pelas subvenções estatais e pelos patrocínios privados, belo e ordeiro, é rigidamente controlado pelos patrocinadores que determinam o roteiro, os horários e até o repertório a ser tocado. O carnaval da resistência, por outro lado, é o da periferia e dos grupos políticos não alinhados, a criticar os governantes do momento e a denunciar mazelas sociais. Essa é a disputa política nos passos de resistência de caboclinhos, nações, troças, ursos, clubes de frevo, maracatus, blocos, bois, reisados, mascarados etc., mas que, diferente do carnaval em si, não tem data para acabar.

Juliano Domingues, cientista político, é professor da Unicap.

Jairo Cabral, historiador, é ex-diretor da Ceroula.

 

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