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Memória preservada

Livros de direito, ainda mais eles, nunca poderiam ser materiais descartáveis. Livros são tesouros. O direito forjou a civilização e salvou-a, redimindo-a

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire
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Gustavo Henrique de Brito Alves Freire
Publicado em 25/03/2023 às 5:00
Acervo pessoal
O traço preservacionista é o DNA da genealogia britoalveana - FOTO: Acervo pessoal

Vem da sensibilidade da poeta goiana Cora Coralina (1889/1985) este pensamento atemporal, com o qual inauguro o presente texto: “O saber a gente aprende com os mestres e os livros. A sabedoria se aprende é com a vida e com os humildes”.

Pensando no que disse a poeta, tenho para mim que, ainda nos correntes tempos de “modernidade líquida” (expressão de Zygmunt Bauman), com o conhecimento a migrar para as traquitanas tecnológicas, no afã de “simplificar” as coisas, os livros acabam continuando a ser as primeiras vítimas indefesas desse ritmo frenético que faz perderse uma compreensão maior do sentido da existência.

Episódios como o incêndio da Biblioteca de Alexandria, com seus 700 mil volumes; a grande queima de 1933 pelo Terceiro Reich alemão de obras malvistas pelo regime; o incêndio da biblioteca do Congresso dos EUA em 1814 pelos ingleses; os 5.000 manuscritos árabes queimados em Granada pela Inquisição Espanhola; a nefasta “Sociedade nova-iorquina para a supressão do vício” em 1873; ensinam que o trauma daí resultante não arrefeceu, e, hoje, ganha identidade no apego quase desesperado de muitos pela cultura inútil, que tem nos livros uma “caretice” e nos “influenciadores digitais” seus tótens.

Carregam, provavelmente, esses sentimentos as manifestações de tantos diante da visão dos livros da biblioteca do saudoso advogado e professor Roque de Brito Alves, figura epicêntrica da ciência do direito criminal brasileiro, conferencista renomado, uma das milhares de vítimas da pandemia da COVID-19, em desarranjo na calçada em frente à sua casa. Tais reações, expressas das mais variadas maneiras, tomadas por uma compreensível tristeza, talvez possa haver se misturado subconscientemente à impressão precipitada de que a família foi negligente ao não impedir o descarte.

Não é bem isso. A família se mobilizou para que os livros fossem recolhidos, encaixotados em contêineres plásticos e levados a local seguro, ao depois para que uma Bibliotecária contratada trabalhasse na sua triagem, indexação e catalogação, o que ainda não foi concluído, vai tomar algumas semanas, e, por fim, para que o passo seguinte seja o da doação desse acervo inestimável em qualidade e não somente em quantidade para duas bibliotecas públicas habilitadas.

Livros de direito, ainda mais eles, nunca poderiam ser materiais descartáveis. Livros são tesouros. O direito forjou a civilização e salvou-a, redimindo-a. Qualquer comportamento que destoe disso não tem como ser justificado. O que ocorreu no episódio dos livros do professor Roque merece, principalmente, olhar assim, ainda mais em um País que investe em educação e cultura tão pouco (6% do PIB). Os Brito Alves são por tradição colecionadores e abonam o que disse Ferreira Goulart: “A arte existe por que a vida não basta”. Livros são uma forma de arte.

Há pouco mais de 6.000 bibliotecas públicas no Brasil; no entanto, entre 2015 e 2020, foram fechadas quase 800 delas. O descaso parece, enfim, ser o traço característico da relação entre o Poder Público e a disseminação do saber no País. Os livros, aliás, são prazeres insubstituíveis em sua simbologia pelas máquinas. O Brasil, com seus 210 milhões de habitantes, possui 1 biblioteca para cada 34 mil deles, quase o mesmo número que a Itália, cuja população é de 60 milhões de habitantes.

A família Brito Alves persevera na contramaré desse lugar-comum no País, buscando transformar, com seu exemplo, a não menos triste verdade de que este é um País de tão pouco apreço à leitura.

O traço preservacionista é o DNA da genealogia britoalveana. Seja na coleção de rótulos de cigarros antigos de Vicente de Britto Alves, doada à Fundaj, seja na coleção de José de Britto Alves, que abrigava antiguidades do mundo inteiro, seja na porção da coleção do próprio Roque de Brito Alves doada ao Museu do Estado de Pernambuco, que o homenageou com uma sala, seja na Biblioteca de Antônio de Brito Alves, meu avô, totalmente preservada.

Eis as reflexões que o momento oportuniza e a concertação permanente que precisa existir, na enferma sociedade que é a nossa, cuja cura só advirá da cultura, mas que insiste em autodividir-se entre duas metades que não dialogam.

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