A professora Raquel Gonçalves Salgado (UFMT) vem desenvolvendo um interessante projeto de pesquisa sobre INFÂNCIA E DITADURA NO BRASIL, entrevistando pessoas, inclusive professores universitários, que viveram suas infâncias durante o período 1964-1985, e as lembranças que dele guardavam. O curioso, disse-nos a pesquisadora, é ter encontrado professores que simplesmente não se lembravam do que ocorrera no período, nem se aquilo tivera alguma importância em suas vidas! Não vejo nisso algo muito estranho ou incompreensível: as informações a que tinha acesso em minha infância não compreendiam necessariamente a vida política do país e aquilo que sei do período foi resultado de minhas leituras posteriores e não das experiências que vivi! Eu também tenho vaguíssimas lembranças (tinha apenas sete anos em Março de 64!).
Duas de minhas irmãs, Iêda e Iara, eram do MCP (Movimento de Cultura Popular), e uma delas (Iara) membro do Partido Comunista (PCB) e recordo-me que, em 64, meu pai escondeu livros dentro do piano - o que impedia minha mãe de tocá-lo- e eu, que freqüentei o Sítio da Trindade (sede do MCP onde minhas irmãs trabalhavam) levei muitos anos para pisar ali de novo!
Em 1969, Iara foi presa no Rio de janeiro e, agora, as lembranças que tenho se tornam mais vivas, embora cronologicamente desencontradas: lembro do imenso transtorno e desarranjo familiar que a sua prisão causou nos dois anos em ficou em Bangu (RJ), posteriormente solta por... "falta de provas" (fora defendida por Paulo Cavalcanti e Mércia Albuquerque). Mas lembro das noites em claro de minha mãe, Ismaília, a chorar e a rezar (Iara nunca falou à nossa mãe das torturas que sofrera, e as cartas que enviava -todas previamente censuradas- eram repassadas para os advogados. Mais tarde ela me disse que continham informações cifradas!). Lembro apenas de uma carta que ela me enviou, pessoalmente, aconselhando-me a ler "um livro infantil de capa marrom, cujo título (ela) não se lembrava", sobre as "aventuras de um jovem em sua viagem de formação pelo mundo"! O livro - um daqueles que papai escondera no piano, não era, caso vocês suspeitem, "Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister", era o "Princípios Fundamentais de Filosofia", de Guy Besse e Maurice Caveing: tratava-se de um curso de filosofia marxista ministrado nos anos 30 por Georges Politzer (PCF), curso de clara inspiração stalinista e um daqueles indigentes "manuais" de marxismo, de pedestre qualidade teórica, mas que eu decorava passagens que recitava no Colégio de Aplicação (UFPE) e que me permitiam posar de "revolucionário" anti-capitalista e anti-burguês, o que encantava as garotas do Colégio: nas raras ocasiões em que leio, hoje, um autor marxista, eu lembro dos meus primeiros amores colegiais: adorava o materialismo histórico e dialético, não como filosofia da história prometendo redenções sociais protagonizadas pelo saudoso "proletariado revolucionário" (do qual ninguém mais fala, coitado!), mas pelos beijos e sarros que a dialética me proporcionava! Digamos que fiz um uso libidinoso da "perspectiva materialista" (eu já estava mais pra Reich - ou Henry Miller- do que pra Lênin!).
Em 1985, ano final da ditadura (embora seja obrigado a reconhecer que nossa transição democrática nunca se completou!), foi também o ano em que concluí meu Mestrado, com uma dissertação sobre o... Partido Comunista em Pernambuco (1956-1964). Esse trabalho recebeu, em 1987, o Prêmio Nélson Chaves (FUNDAJ), mas olhando-o à distância, sei que ele representou um acerto de contas, um ato de exorcismo psicanalítico com o profundo sofrimento que aquele período nos trouxera. Porque ali, naquela tese, não era propriamente a ditadura com seus ignominiosos crimes e violações praticados pelos militares (aliás, militar brasileiro só mata mesmo brasileiro, desde pelo menos as insurreições separatistas!), que me interessava, mas, sim, como uma "filosofa da história" (eu analisava a tradição leninista-stalinista que marcara o PCB) conduz, como as religiões soteriológicas, à crença redentorista de que a sociedade poderia ser salva por uma de suas classes! Quer dizer, como uma religião secular produz conseqüências políticas danosas (como qualquer crença dogmática, aliás!). Alguns anos depois, Iara, a irmã que me indicara aquele livro de "capa marrom", disse-me que "eu tinha razão. Mas, completou, era fácil fazer profecia a posteriori!".
Ainda guardo aquele livro de capa marrom de minha adolescência "revolucionária" e, junto com ele, uma imensa saudade de minha irmã, falecida em 2005.
(Para Iara. In memoriam)
Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE
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