Estudiosos da mente humana talvez possam explicar a razão dessa ferocidade que conspurca o Brasil. Já não pensamos no assassinato fruto da legítima defesa. Estamos diante de uma carnificina desmotivada. Admitir que um adolescente de 13 anos esfaqueie e assassine professoras e colegas numa sala de aula é abominável. Saber que um “adulto” ingressa numa creche para golpear com a machadinha a cabeça de inocentes, invalida a tese do “L’Emile”, romance pedagógico escrito por Rousseau, enfatizando a natureza boa do homem.
O filósofo vai mais além ao afirmar que “a instituição pública não mais existe, e sequer poderá voltar a existir considerando que já não há pátria e sem ela não há cidadãos”. A frase tem a ver, hoje, com as distorções da era tecnotrônica: as redes de comunicação, os meios de informação de massa, o advento da conversação móvel. Igualmente, encrava a ideia de que a televisão se converteu numa máquina com capacidade para o cárcere consentido.Na condição de instrumento repetitivo do fato é também é responsável pelo efeito manada ou mimetismo exacerbado do ato criminoso.
Em tudo isso, a família pouco tem concorrido para a maturidade dos seus integrantes. Evaporaram-se com o tempo as conversas oportunas e úteis no horário das refeições, o diálogo a dois entre pais e filhos, a capacidade de ouvir, escutar e aconselhar sem o ritual do discurso.
Hoje, cada membro do clã é uma peça separadada engrenagem de uma instituição milenar: todos acordam em horários distintos, percorrem trilhas opostas, renunciam à afetividade no ato de despedida. Por sua vez, a mesa de jantar se converteu numa peça decorativa e inútil do mobiliário. Cada um tem o seu prato feito e requentado no micro-ondas da cozinha.
Pior: muitos só conseguem se alimentar se estiverem com a televisão ligada no quarto-masmorra. Cada um no seuaposento talvez acompanhado de um parceiro desconhecido. O contato pouco frequente com os demais “usuários” é feito com o uso do celular.
Os pais sequer percebem que os filhos desejam ser ouvidos e escutados e que eles têm pressa e necessidade do hoje antes que o amanhã esvaeça. E é dispensável a qualificação de preto, pobre, homossexual, transexual, índio, rico, intelectual, ignorante.
Afinal, qualquer que seja o conceito, os filhos são quase sempre espectros aleatórios da marginalidade e da solidão. Fazem recordar a obra de Sloan Wilson – “O homem de casaco cinzento” – em que o autor tenta ridicularizar a vida oca ou vazia dos executivos norte-americanos nos idos de 50. É com esse fantasma preocupante que o Governo difunde alternativas para a insegurança e violência que grassa o País.
Para isso já se discute mais um plano do século 21: a vigilância na condição de “vacina” contra a trucidação do homem. São 150 bilhões para custeio da segurança para cerca de 200 mil escolas. Nesse “quantum” irrisório, após o uso da fração, deve sobrar pouco até mesmo para a segurança jurídica, algo quase inexistente no Brasil de hoje.
Por seu turno, o debate sobre a educação é demasiado introvertido. Ainda não se discute quem poderá, de fato, formar nossos filhos; se os educadores ainda existem; e se já não se faz tarde para o amanhã.
O fato é que o mundo se converteu num projeto de consumo e de poder corrompido. Afinal, poder sem justiça é apenas violência. Há poucos dias um rapaz justificou a função ilegal de “mula”, que exercia numa quadrilha de traficantes de maconha e cocaína: “eu precisava de grana para comprar uma moto”. Outros necessitam de um apartamento de cobertura com piscina e um lamborghini.
Desejos e motivações podados podem se converter, na sociedade de consumo, em ódio, rancor, rituais obsessivos, paranoia, sentimentos de inferioridade, reduzida autoestima, impotência... O mesmo sucede quando minguam os valores e princípios na sociedade.
É nesse fim de estrada que eclode a natureza selvagem e predatória do homem. Acentua esse cartum, a crueldade daqueles que têm a obrigação de barrar o desfecho ruinoso: os policiais.
Nos velhos tempos era a masmorra, o açoite em salas fechadas. Hoje tudo acontece na claridade, com o uso do revólver, do cassetete, do pisoteado no rosto ou do pontapé que faz jorrar o sangue - sangue que tingirá o asfalto de rubro.
E tudo isso sob o olhar daquele que passa usando, de forma dissimulada, o gravador do celular para postar nas redes sociais. George Orwell tinha razão na obra “1984”. Mas esqueceu um ângulo fundamental: para que tantos e tantos olhos se estamos cegos? Enfim, tudo peregrina para a terrível crise existencial e para a convicção daimpassibilidade ou abulia naqueles que nos “governam”.
Dayse de Vasconcelos Mayer, doutora em ciências jurídico-políticas
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