
...oitenta assassinatos nos primeiros dez dias de maio em Pernambuco; as escolas e creches agora são alvo dos mais desumanos morticínios; mais de 200 atentados desde o começo do ano no EUA; massacres indiscriminados em lugares públicos no mundo inteiro; 35.000 mortes no trânsito em 2022; cidades inteiras sob o terror da violência comandada e organizada (Natal)... Receio que estejamos diante de uma nova modalidade de violência, que alguém chamou de "violência sem álibi"! E parece que as formas que estamos utilizando para combatê-la (repressão direta, inteligência policial, controle da internet, educação) não levam em consideração a sua "novidade" de métodos, de equipamentos e, sobretudo, da inspiração subjetiva de seus praticantes.
Não posso esquecer que aquilo que chamamos de "neoliberalismo" - e que atingiu diretamente nossas instituições e, em particular, a educação- produz um tipo de afeto privado e de vida social que não pode existir sem formas específicas de violência, propondo que o social deva ser tecnicamente administrado (desmoralização da política) e suprimindo a dimensão afetiva do "pudor" na vida pública (que Platão, no Protágoras, dizia ser essencial à vida da Pólis). Mas, sobretudo, ressemantizando a noção de justiça das instituições que regulam nossas relações. Nada disso pode funcionar sem a produção de um NEOSUJEITO, um perfil psicológico adaptado a certas exigências e se autoavaliando a partir de olhos e conceitos fornecidos pelo próprio neoliberalismo!
Nos anos 80, o psicanalista Hélio Pellegrino publicou seu "Pacto edípico, pacto social" propondo um diagnóstico psicanalítico da sociedade brasileira relacionado à situação política que vivíamos (fim da ditadura): a pesquisa psicanalítica comprometida com a crítica social, relacionando dimensão social e dimensão subjetiva do sofrimento, mostrando que cada ordem política ou econômica (no caso o fim do nacional-desenvolvimentismo) exige a confecção de um "sujeito". Pellegrino mostra como o capitalismo promove dois tipos de ruptura que fragilizam o pacto social: usando o conceito marcuseano de "mais-repressão", o capitalismo avançado tem necessidade de um segundo nível de recalcamento - o das consciências- além do pulsional, que implica a dominação do psiquismo do trabalhador. Resultado: um tipo de mal-estar e de sofrimento que ameaça o pacto social (estabilidade das instituições), sobretudo através do que chama de "sociopatia de nossos governantes" (a esfera política corrupta e deformada gerando descrença e ruptura, além, claro, da perda do lugar subjetivo na sociedade). A consequência é um tipo de violência decorrente dessa "traição" dos políticos (lembrem-se dos constantes massacres nos morros cariocas, do assassinato do índio Galdino por jovens que estavam "se divertindo", ou de Brizola candidato dizendo que "sua polícia não iria subir o morro"!
O modelo de Pellegrino não funciona mais e, com FHC, o neoliberalismo deu seus primeiros e decisivos passos entre nós: era o fim do estado varguista. Agora, o Estado não é mais o fim nem o começo (indutor) do social: é regulador minimalista do mercado, com uma polícia protegendo este mesmo mercado, inclusive das "más escolhas" feitas pelo democracia: tivemos aumento da criminalidade organizada, capilarizada e internacionalizada, das milícias envolvendo ex-policiais e políticos (com gestão empresarial do crime), da medicalização, da tristeza e humilhação social, do desemprego estrutural.
Então, foi preciso um outro SUJEITO! Aquele que vê seu próprio fracasso como incompetência e preguiça, o desemprego como convite ao empreendedorismo e como responsável por seu próprio desastre. Redefine-se um sujeito e o tipo de liberdade que lhe cabe: racional em suas escolhas (baseadas na relação custo-benefício), autônomo sem heteronomia (a lei externa como repressão, um ego emancipado de toda espessura moral - "ego de resultados"), que vê a educação como investimento financeiro (quando a teoria do Capital Humano se espalhou entre nós!), vendo a si mesmo como empresa exigindo habilidades, competências e metas. E vendo toda assistência do Estado aos mais necessitados com suspeita (coisa de dependentes e preguiçosos), além, claro, da alteração da função ética da razão, querendo um tipo de contrato civil sem nenhuma responsabilidade pelo outro! Um "egoísta sem transcendência", para usar termos kantianos!
Nesse reino do narcisismo, da performance e da depressão, vivemos uma guerra civil crônica, com suas violências que privam as vítimas de sua própria humanidade no ato da agressão, juntando violência e racionalidade (planejar e executar o massacre), com uma noção de liberdade impermeável à alteridade. Uma violência sem finalidade nem sentido (como naquele safári humano do filme "Bacurau").
O resumo dessa barbárie é um sonoro "-E daí? Eu não sou coveiro!"
Flávio Brayner, professsor emérito da UFPE