Tomás de Torquemada, o frade dominicano ibérico, era um homem de fé. No seu tempo, em meados do século XV, foi incensado pelos cronistas de época com copiosos elogios pela sua jornada em defesa da cristandade. Recebeu as alcunhas de "O Grande Inquisidor", "O Martelo dos Hereges" e diziam-no ser "a luz de Espanha", "o salvador do seu país" e "a honra da sua ordem".
Na missão que abraçou, sempre esteve imbuído das melhores das intenções. Via-se como um servidor de Cristo e cria piamente que a eliminação dos marramos (descendentes dos judeus sefarditas) seria a única forma de combater a heresia e de garantir a soberania da verdade evangélica. Para ele e para muitos da sua época, a defesa dos valores cristãos passava pela morte e pela tortura de vários milhares de pessoas. A paixão desmedida pela "causa" fez com que muitos inocentes queimassem na fogueira. A história reservou-lhe um péssimo lugar, atribuindo-lhe a pecha de bárbaro assassino e de pecador contumaz.
O exemplo de Torquemada serve ao Brasil de hoje, quando agentes públicos bem intencionados, também sob a aplauso das turbas, veem-se como devotados missionários em defesa de nobres causas. Entregando-se apaixonadamente à imaginada defesa de valores democráticos, em verdade, potencialmente semeiam as ferramentas do totalitarismo, criando normas capazes colocar a democracia em xeque. A regulação exacerbada dos conteúdos digitais e a interpretação demasiadamente ampliativa das competências constitucionais para o atendimento a "necessidades" pontuais são alguns exemplos de tais ameaças.
É fato que, há muito, expressamos uma indignação seletiva e professamos valores instáveis, de acordo com conveniências do momento. Millôr Fernandes, há algumas décadas, ironizava dizendo que "democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim."
Curioso que aqueles que hoje reclamam de Alexandre de Moraes, até bem pouco tempo, aplaudiam Moro, e as acusações contra um e outro são bastante parecidas. Aqueles que criticavam um político sério e honrado, dizendo-o um "picolé de chuchu," agora vêm cor e sabor no papel por ele presentemente desempenhado no governo. No que toca à postura presidencial, constata-se que muitos dos revoltados com o patrocínio da reforma do diminuto triplex do Guarujá não veem qualquer problema no recebimento de mimos de alguns milhões de dólares de dignitários estrangeiros. Ouvi de um amigo: não se pode receber presentes?
O fato é que são sempre vários pesos e múltiplas medidas nas análises. E, quando falta a coerência e a atuação dos poderes públicos é casuística, o alicerce democrático é abalado. A importância da liberdade de expressão e de crítica justifica a convivência com pontuais abusos. As humaníssimas paixão e ódio não podem permear julgamentos ou ações de agentes públicos sem a consequência de um retrocesso civilizatório e do descrédito nas instituições. O "olho por olho, dente por dente" deve permanecer guardado em seu lugar na história da humanidade, sob pena de padecermos todos, em breve, de uma compulsória e coletiva cegueira democrática.
Ronnie Preuss Duarte, diretor-Geral da Escola Superior de Advocacia do Conselho Federal da OAB