OPINIÃO

"Eu acuso" veementemente

Há dias uma professora tomava café numa lanchonete em Boa Viagem e comentava em cicio: "Deveria existir uma disciplina no ensino médio para ensinar o que é envelhecer. Após a minha aposentadoria, eu sou uma mulher deserta"...

DAYSE DE VASCONCELOS MAYER
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DAYSE DE VASCONCELOS MAYER
Publicado em 21/05/2023 às 0:00 | Atualizado em 21/05/2023 às 10:51
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Uma "CPI da Velhice" resultaria numa conclusão de fundo: os desdouros da terceira idade e os casos de suicídio - FOTO: PIXABAY

Não há governo, no Brasil, que não tenha sido “ungido” por uma CPI. Entretanto, os resultados de uma Comissão desse porte permanecem em segredo ou ocultos por decênios. Seria o caso do golpe de 8 de janeiro que exigiria um Émile Zola para a escrita de um novo “J’Accuse”. Numa das passagens do artigo, publicado no jornal “L’Aurore”, Zola escreve na defesa de Dreifus: “Meu dever é de falar, não quero ser cúmplice. Minhas noites seriam atormentadas pelo espectro do inocente que paga, na mais horrível das torturas, por um crime que ele não cometeu". Infelizmente, que o homem de hoje está com a consciência cauterizada ou despojada do sentimento de culpa.
Nesse breve registro percebe-se que a conduta humana não se insere apenas no político. Acima de tudo ela é moral, ética, econômica, religiosa, cultural...É nesse contexto extenso que se põe uma “CPI da velhice”. Ela resultaria numa conclusão de fundo: os desdouros da terceira idade e os casos de suicídio (a cada 100 mil habitantes acima de 75 anos, 15 atentam contra a vida, segundo a OMS). Convém não esquecer que, ao longo da história humana, a situação dos idosos pouco foi modificada. Na Grécia Antiga, os velhos eram aviltados ou achincalhados, nomeadamente no teatro-comédia, mistura do sublime e do grotesco. No realismo grotesco enfatizava-se o que existia de mais humilhante na velhice: a proliferação das rugas e da flacidez corporal, a ociosidade, o mau cheiro característico e a proximidade da morte. Um fragmento da obra poética de Safo, “canção sobre a velhice”, ilustra esse registro: Pois o meu corpo, outrora delicado, a velhice agora ataca, e fez-se branco o meu cabelo negro de ontem. O coração está pesado e os joelhos fraquejam. E eles que um dia foram ágeis no dançar...isso lamento sem cansar. Mas que fazer? Desprovido da velhice não se pode ser, sendo-se humano”.
Há dias uma professora tomava café numa lanchonete em Boa Viagem e comentava em cicio: “Deveria existir uma disciplina no ensino médio para ensinar o que é envelhecer. Após a minha aposentadoria, eu sou uma mulher deserta”. Por certo ela desejou afirmar que a mulher jubilada, longe de ter recebido a recompensa final - sossego, paz e liberdade - foi penalizada com a casta penúria: o relógio não badala, o telefone não toca, a porta está sempre fechada, o jarro com flores murchas ou secas não muda de lugar. Tudo isso faz lembrar a obra “a velhice” de Simone de Beauvoir (1908-1986). Nos escólios, Beauvoir discute a percepção que os jovens têm das pessoas velhas. Constituiriam bocas inúteis numa sociedade fundada no valor produtividade. Seriam párias desqualificados, criaturas sem futuro ou excluídas de qualquer papel social. Por isso só lhes restariam as amarguras da sua condição: a impaciência e exaustão dos familiares e a indiferença dos moços. Numa sociedade utilitarista e sedenta de lucro, o idoso acaba se convertendo num refugo ou sucata. E Simone conclui: "Terrível não é a morte, mas a velhice e seu cortejo de injustiças".
A filósofa anota um aspecto deslembrado: “a sexualidade na terceira idade”. Embora o corpo decaia, continuamente, a chama do sexo não se apaga. E a escritora reforça: “No caso da mulher velha não existe espaço, não existe iconografia na nossa cultura para a representação dos desejos dela...”. Também Clarice Lispector no conto “A procura de uma dignidade” - primeiro texto da obra “Onde estivestes de noite” - faz referência ao segredo mortal das mulheres idosas: desejo de possuir e de ser possuída. Por isso grande parte vive em durável censura, rejeição e “expiação do desejo”.
Tais comentários justificariam a abertura de uma “CPI da velhice” para romper a conspiração do silêncio dos donos do poder. Perceberiam os governantes que os idosos necessitam – e a maioria não pode adquirir – de medicamentos caros, aparelhos auditivos onerosos, próteses, lentes especiais, cânulas, bengalas, exercícios físicos, fisioterapeutas, auxiliares de saúde ou acompanhantes.... Tudo isso equivaleria a “uma” ou “duas” diárias de um hotel de luxo no exterior. Esse despertar faria a Receita Federal esquecer, pelos ossos do ofício, as armadilhas ou emboscadas legais para cobrança de imposto de renda dos aposentados com renda abjeta. Não ficaria de lado as contribuições obrigatórias ao INSS. Nesse momento faustoso, Legislativo e Executivo estariam erguendo a bandeira da sensatez e da dignidade da pessoa humana nos exatos termos da nossa Constituição - sempre atentos aos danos causados aos idosos quando a Carta Maior é rudemente violada.


Dayse de Vasconcelos Mayer , doutora em ciências jurídico-políticas.

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