Transcrevi acima uma das passagens mais reflexivas do livro de José Saramago, o Evangelho segundo Jesus Cristo (Companhia das Letras, 2005).
Quem é o Bem? Quem é o Mal? Em que medida eles podem ser complementares? Imerso no nevoeiro que se formou sobre a barca em que navegas nos últimos anos, caro leitor, tua resposta será distinta.
A depender de tua experiência na longa jornada da vida, das pessoas com as quais convivestes, das crenças que te moldaram, das dúvidas que tornastes certeza, tu saberias compartilhar sem apontar o dedo a quem de ti discordes?
Tenho sinceras dúvidas. O véu da tolerância foi rasgado no tempo das disputas modernas e a sacralidade das relações tornaram-se letra morta no conviver entre gentes.
Saramago militou até a morte em defesa do credo comunista tal qual ele o compreendia. Participou da política, dirigiu jornais, constrangeu-se entre pares, mas foi inflexível no seu pensar.
"Não sou um ateu total, todos os dias tento encontrar um sinal de Deus, mas infelizmente não o encontro".
Quando a debacle da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas se consumou, o muro de Berlim desmoronou e a utopia da igualdade marxista se mostrou inatingível, ele perdeu o chão que ainda o sustentava e com esse foi-se a sua fantasia.
Então a poderosa pena do escritor português colocou no drama da vida e morte de Jesus Cristo a crua visão materialista da esquerda do século passado.
Deu contornos humanos ao que deveria ser místico e tão somente pura fé.
Reformulou a história contada nos quatro evangelhos certificados pela Igreja e criou a sua própria narrativa de caminhada, discursos, milagres e sofrimento do Filho de Deus e seguidores.
Trata-se de um romance agressivo aos dogmas cristãos que nos rapta por momentos e nos faz pensar nas relações egoístas de poder dos nossos dias.
Relações a descortinar contendores que sobrevivem de se alimentarem das entranhas adversárias expostas nas arenas políticas, psicossociais e econômicas, que impedem a humilde aceitação de que o dissenso gera o consenso.
Segundo alguns analistas da obra, Saramago colocou no romance o Bem contra o Mal pelejando mais uma guerra ideológica que religiosa.
Compreensível diante do "fim da história" projetada por Francis Fukuyama ao início da década de 1990. Contudo, a história morreu para logo ressuscitar com contornos semelhantes.
O Bem e o Mal continuam a duelar e, se desejares tomar partido, não esqueças do que afirmou o escritor: o Bem e o Mal não existem em si mesmos, cada um deles é somente a ausência do outro.
Otávio Santana do Rêgo Barros, general de Divisão da reserva