OPINIÃO

Um futuro incerto

...O que esperar de nossos professores em termos de fazer com que seus alunos não se vejam exclusivamente pelos olhos do sistema aos quais pertencem?

FLÁVIO BRAYNER
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FLÁVIO BRAYNER
Publicado em 30/05/2023 às 0:00 | Atualizado em 30/05/2023 às 14:50
Marcello Casal Jr/Agência Brasil
"Como é possível conciliar competitividade, performance, ranqueamento, empreendedorismo e resultados mensuráveis com "universidade solidária, consciente, crítica, democrática, pública e socialmente comprometida" num projeto de formação de professores? - FOTO: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Fui convidado pelo reitor Alfredo Gomes (UFPE) para fazer uma intervenção na reunião nacional da ANDIFES (Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior) sobre a tema "Formação do Professor". Faço, a seguir, um pequeno resumo das preocupações que ali manifestei.

Há, a meu ver, sinais, neste meu presente universitário, que parecem apontar para futuros que reputo indesejáveis. E o mais indesejável deles -para mim- é a transformação da universidade de um lugar do "como pensar" em um outro, o do "como fazer": receio que seja sobre a dominação hegemônica da "técnica" e orientada por exigências mercadológicas que está sendo reconstruída a instituição universitária. A questão inicial, assim, pode ser esta: como é possível conciliar competitividade, performance, ranqueamento, empreendedorismo e resultados mensuráveis com "universidade solidária, consciente, crítica, democrática, pública e socialmente comprometida" num projeto de formação de professores? Quando vemos ou ouvimos o discurso ao nosso redor, a respeito de ranqueamento, inovação, competitividade, produtividade, gestão, governança, produção, negócios..., denotando e conotando, com uma linguagem nova, a construção de uma outra realidade institucional (mudam-se as palavras para que o sentido que atribuímos às coisas possam também mudar) é porque algo de importante aconteceu e que não se trata simplesmente de "adequar a universidade às exigências dos novos tempos": trata-se de criar este "novo tempo" e apresentá-lo, finalmente, como resultado de uma evolução natural. Há, pois, uma revolução em curso: a que instalará a distopia do homem-recurso dispensável, a que ameaça de eliminar do cenário universitário a resistência crítica, uma vez que ciência "objetiva e neutra" não é objeto de debate público. Mas, se o pensar é exatamente aquilo que interrompe o continuum da vida, que nos retira da ordem imediata do mundo, dos automatismos ideológicos das respostas, do encadeamento causa-efeito..., para suspender, por um instante, nossas certezas habituais e, com isto, permitir o exercício do julgamento, só possível na presença partilhada ou confrontada com a pluralidade de outros pontos de vista, então, uma Universidade da mensuração e do ranqueamento é uma Universidade que não pensa mais!

Quando ouço alguns de meus colegas afirmarem que ao tríptico "Ensino, Pesquisa e Extensão" deve ser acrescentado um quarto -"Negócios"- é porque aquela ideia de uma Universidade como um lugar, ao mesmo tempo, perto e distante da vida ordinária (perto porque é dela, desta vida, que retira sua matéria reflexiva; distante, porque pensar e teorizar implicam distanciamento) se deixa invadir e colonizar pelo ambiente de negócios é porque a distância necessária para se "refletir sobre o quê nos acontece" (H. Arendt) foi suprimida. O que reafirma a condição indesejável, a meus olhos, de uma UNIVERSIDADE UNIDIMENSIONAL (Marcuse). E mesmo que supostamente ela "pensasse", este pensar teria perdido seu predicado essencial: a autonomia. E é aqui onde se abrem as portas da ideologia meritocrátrica, cuja etimologia não explica que contrabandos semânticos foram introduzidos no seu uso atual. Hoje o discurso meritocrático-gestionário, esteio ideológico da "produtividade" acadêmica, cumpre o papel inverso: ele restaura hierarquias, qualifica e desqualifica pessoas em função de critérios não substantivos, distribui privilégios, seleciona "talentos" e, no horizonte, reabilita uma ordem aristocrática: uma Universidade assim representaria o fim de minha própria condição pedagógica.

Mas não posso terminar sem deixar de apresentar algumas questões que eu mesmo não sei como responder:

a)Nós acreditamos que a chamada "consciência crítica" é fator fundamental da formação do professor. Mas na sociedade do hiper-consumo não é a consciência que é manipulada pela ideologia, mas o desejo, que é infraconsciente. Como formar o professor para se contrapor, pedagogicamente, à manipulação do desejo?

b)Num mundo sem utopias e que se volta contra o passado, seja como iniciativa de reparação, seja de modificação; em que a família se transformou e o espaço público (cidadania) está em crise, o que acontece com aquela posição do professor na "encruzilhada"?

c)E, finalmente, num momento como este, marcado pelo hegemonia neoliberal, em que está em jogo a formação de uma nova subjetividade auto-empreendedora - o sujeito como uma empresa de si- o que esperar de nossos professores em termos de fazer com que seus alunos não se vejam exclusivamente pelos olhos do sistema aos quais pertencem?

Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE

 

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