O futebol nasceu imperialista, colonialista, eurocêntrico, branco e carregado das forças indomáveis do preconceito. Na sua terra natal, Inglaterra, movida pelas inovações da Revolução industrial, não havia pôr-do-sol, tamanho o território da dominação britânica.
Em outubro de 1863, na Freemason´s Tavern, no centro de Londres, foi criada a Football Association e um comitê que uniformizou e codificou 14 regras publicadas no jornal Bells Life no dia 8 de dezembro do mesmo ano. As normas eram simples, de aplicação universal e se mostraram estáveis ao longo do tempo. O futebol nasceu com a soberba do globalismo, elitista, mas logo ganhou o mundo e um número crescente de adeptos.
Onde chegou, o futebol criou identidades individuais e coletivas. Encantou personagens dos elegantes salões, invadiu os grandes bolsões de pobreza e enfeitiçou multidões. Fez nascer a única paixão monogâmica até que a morte separe os seres apaixonados: os torcedores que, com alma devota e espírito de criança, torcem e jogam com o time; aplaudem e vaiam; idolatram e condenam com a mesma intensidade, mas não desatam os nós da relação.
Eduardo Galeano, com rara sensibilidade, traduz o futebol como fenômeno e metáfora social: “O futebol foi e continua sendo um símbolo primordial de identidade coletiva. Jogo, logo sou; o estilo de jogar é uma maneira de ser, que revela o perfil de cada comunidade e reafirma seu direito à diferença. Diz-me como jogas que te direi quem és; há muitos anos que se joga o futebol de diversas maneiras, expressões diversas da personalidade de cada povo, e o resgate dessa diversidade me parece, hoje em dia, mais necessário que nunca”.
Criação do homem, o futebol carrega a grandeza e a miséria da condição humana. É chocante, mas não surpreende que o espetáculo revele o refinamento da arte e baixeza dos maus instintos. Com razão, Nelson Rodrigues dizia que, como um menino, via o amor pelo buraco da fechadura e via o futebol com os olhos iluminados. Aos domingos, nos estádios contemplava os anjos e os demônios de sua devoção.
No Brasil, Charles Miller trouxe a bola para se jogar com os pés. A brincadeira que começou com rapazes ricos e “bem-nascidos” foi adotada, popularizada na periferia e assumiu a ginga, a malemolência, criatividade e a improvisação. Ou como registra Mario Filho na preciosa obra clássica “O Negro No Futebol Brasileiro”: “O futebol foi se tornando brasileiro demais”.
Na origem, brancos e pretos apartados. Exclusão objetiva, real para se tornar, nos nossos dias, a abominável violência social do preconceito. Aliás, preconceito na esfera política também: por décadas os “intelectuais conservadores” viam o futebol com desdém, coisa da ralé; “os intelectuais de esquerda” o acusava o futebol como uma diversão alienante para desmobilizar o proletariado emergente.
Os nacionalistas radicais defendiam a tradução da palavra “football” para o horroroso vernáculo “ludopédio”.
Até a abolição do “passe” (Lei Pelé), o jogador era uma ativo patrimonial, “coisa” a ser vendida, comprada ou emprestada. Apesar do atraso institucional e gestão desastrada das agremiações esportivas, o Brasil tornou-se potência futebolística, não só pela conquista de títulos, berço do insuperável atleta, Pelé e, a despeito dos reveses, seguiu produzindo e exportando jogadores de notável talento.
Por um longo período, a precocidade e a componente lúdica foram marcas do jogador brasileiro, gestado na formação silvestre que, segundo o Loco Bielsa “é a melhor de todas. Não tem rigidez e os jovens executam espontaneamente”.
Com a extinção da várzea e dos espaços urbanos vazios, as “escolinhas” passaram a ser as incubadoras de atletas. Com pouco mais de cinco anos, Vini, integrado à escolinha do Flamengo, em São Gonçalo, mereceu o seguinte elogio do professor: “nunca deu problema, mas sempre acima da média”.
Vini Jr nasceu com o dom. É um artista da bola. Um atleta portador de todos os fundamentos do craque consumado. Imarcável. Dribla em velocidade. E é goleador. Tem o carisma de líder. O frescor de uma criança.
O sorriso contagiante pelo gol improvável. Uma força da natureza que encantou as pessoas e mobilizou o mundo contra o ódio do racismo, crime de lesa à humanidade. Agora é a vez de punir exemplarmente a horda bárbara com o peso da lei e das instituições.
Vini venceu. Racistas, fora do futebol!
Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco