OPINIÃO

Escola e República

As advertências de Rui Barbosa sobre a necessidade de uma educação para as massas, não tiveram consequência nem continuidade...

FLÁVIO BRAYNER
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FLÁVIO BRAYNER
Publicado em 20/06/2023 às 0:00 | Atualizado em 20/06/2023 às 18:52
Foto: Arquivo JC Imagem
Em dezembro de 1945, povo elege general Eurico Dutra novo presidente do País - FOTO: Foto: Arquivo JC Imagem

Um espírito brincalhão já disse que a República no Brasil precisou apenas de duas coisas: um cavalo e um Marechal! O povo, "bestializado", como observa José Murilo de Carvalho, acreditando tratar-se de uma parada militar, esteve, como sempre, ausente dos grandes momentos de viradas históricas quando se definiam regimes e projetos de sociedade e governo. A República inaugurou ou renovou cidades sem cidadãos, manteve um rosto oligárquico com leve fachada liberal e não integrou as camadas sociais recentemente saídas da escravidão e, sobretudo, não avançou num projeto que implicasse a construção de um "povo" como entidade política: um projeto de república sem republicanos e, se tivesse sido possível, sem povo!

Faltou-nos também um projeto de escola republicana. De um lado o "povo" não via a necessid ade da escola já que a ela não representava, naquele contexto, nenhum meio de ascensão ou de progresso social para os negros e pobres. As advertências de Rui Barbosa sobre a necessidade de uma educação para as massas, não tiveram consequência nem continuidade, e os projetos de reforma - ali onde tocavam as classes populares- tinham intenção moralizadora (higienizadora), voltada para o controle social em cidades que começavam a se tornar demográfica e politicamente difíceis de administrar. O "entusiasmo" e o "otimismo" pedagógico, assinalados pelo professor Jorge Nagle, não foram suficientes para introduzir entre nós uma sensibilidade republicana que enxergasse na escola o móvel de formação de um projeto nacional consistente: permaneceu em nossas instituições o traço elitista e conservador de uma sociedade envergonhada de sua própria demografia em função da presença negra, "povo" que jamais poderia assumir o destino da Nação!

É com Vargas, após 30, que teríamos o primeiro esboço de um "projeto nacional' que superasse as limitações de um republicanismo restrito às elites locais. É somente em 32, com a Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, que vamos ter, finalmente, um libelo a favor da expansão e da qualificação de nossa escola pública, com metodologias e didáticas renovadas (inspiradas no pragmatismo americano de Dewey) exigindo a incorporação das massas à educação escolar plena, voltada para o desenvolvimento social e econômico de uma nação cansada de "macaquear" a Europa.

Mas a questão da educação do povo não era algo facilmente aceito e evidente por si mesmo. Não pelas razões que, de ordinário, nos acostumamos a invocar: a ignorância das massas que facilita a dominação política e ideológica, etc, etc. Gilberto Freyre num conjunto de crônicas publicadas nos anos 20 (os chamados "Artigos Numerados") defende a curiosa ideia de que a escolarização massiva das classes populares poderia significar o fim da... "cultura popular"! Freyre procurava mostrar que, uma cultura tradicionalmente oral, gestual e imagética, caso fosse submetida à detergentização escolar, sob a forma de conteúdos padronizados, originários da cultura letrada, significaria o fim das tradições populares. Era, assim, a "cultura popular", esteio de uma cultura nacional que estava em perigo com a difusão de uma escola de tipo republicano!

Isso mostra apenas que que a reação à escolarização das camadas populares não obedecia apenas a "interesses de classe" reacionários e apegados à manutenção do status quo: como se pode observar, a resistência antirrepublicana de intelectuais esclarecidos e "modernos" tinha muitas vezes como móvel a defesa de supostos "interesses culturais" (seja lá o que isso quer dizer!) do próprio povo, que, claro, não conhece seus próprios... "interesses" e precisa sempre de tutelas e "vanguardas conscientes"! Mesmo a chamada "educação popular" dos anos 50 não fugiu a este dilema ideológico. Mas, poderíamos rebater, se uma escola efetivamente republicana os tivesse assistido, é provável que tais "classes populares" não precisassem desses guias esclaarecidos e dispusessem das condições para escolher que aspectos da sua "cultura" gostariam de ver preservados ou não. Essa, por sinal, era uma das tarefas críticas de uma escola genuinamente republicana!

Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE

 

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