
Há quase um consenso entre economistas e formuladores de políticas de que a economia brasileira vem passando por um processo de desindustrialização que se manifesta na redução da participação relativa do setor industrial (principalmente da indústria de transformação) no PIB-Produto Interno Bruto. Nos anos 80, a indústria de transformação contribuía com 24% do PIB brasileiro, participação que caiu para 15,3%, no ano 2000, e continuou declinando a ponto de representar pouco menos de 12%, em 2020. Por mais que se fale na expansão do agronegócio brasileiro no mesmo período, o declínio da participação da indústria de transformação não é resultado do aumento do peso relativo da agropecuária no PIB, praticamente estacionado em torno de 5,3% desde o ano 2000. Na verdade, é o setor Serviços que aumenta a participação no PIB brasileiro, num movimento semelhante ao que tem ocorrido em todos os países desenvolvidos, subindo de 67,7% para 72,9%, nos últimos vinte anos (2000 a 2020).
Dentro deste quase consenso, existem grandes divergências quando se trata de definir uma política industrial. Para clarear o debate é necessário evitar alguns equívocos de análise que podem levar a caminhos tortos e risco de fracasso. Em primeiro lugar, não é correto considerar que o desenvolvimento de uma nação depende de uma presença forte da indústria na economia. Embora a industrialização tenha tido um papel relevante na expansão e modernização das economias, não tem mais a mesma importância na economia neste século XXI. Muito pelo contrário, em todos os países desenvolvidos e maduros tem havido um declínio consistente da participação da indústria de transformação no PIB, embora com ritmo e intensidade diferentes, sintoma de evolução da economia do conhecimento. Na Alemanha e no Japão, a indústria de transformação representa ainda pouco mais de 20% do PIB, enquanto nos Estados Unidos, na França e no Canadá esta participação flutua um pouco acima 10%; mesmo a China, com o impulso industrial das últimas décadas, vem registrando uma redução relativa da sua indústria de transformação (atualmente, abaixo dos 30% do PIB).
A perda de posição relativa da indústria de transformação nestes países desenvolvidos e com elevado PIB per capita constitui um movimento "natural" de desindustrialização, resultado da diversificação da estrutura produtiva com a dinamização dos serviços industriais e serviços avançados e de informação. Mas, para países como o Brasil, com modesto PIB per capita, o declínio relativo da indústria seria uma desindustrialização "precoce" (segundo Guilherme Nascimento Gomes e Antônio Carlos Diegues), embora corresponda também ao crescimento dos serviços industriais e dos avançados, incluindo os serviços públicos. Com efeito, o segmento "Administração, defesa, saúde e educação públicas e seguridade social" passou de 15,7% do PIB, no ano 2000, para 18,6%, em 2020, muito acima da participação da indústria de transformação.
Por outro lado, o debate sobre a desindustrialização no Brasil reflete algumas vezes um certo preconceito com as atividades agropecuárias, particularmente o agronegócio, como se o crescimento deste dificultasse a indústria de transformação. Na verdade, a própria segmentação setorial da economia vem perdendo sentido na medida em que vão se constituindo complexos industriais e econômicos, com uma forte integração entre a moderna agropecuária e a indústria de transformação. De acordo com estudo do Instituto de Estudo para o Desenvolvimento Industrial - IEDI (citado por Marcos Rehder Batista), cerca de 36% da atividade industrial brasileira depende da agropecuária, seja na compra de máquinas, equipamentos e insumos industriais, seja no processamento e industrialização dos seus produtos. De modo que, o bom desempenho do agronegócio, especialmente na exportação, tem um impacto altamente positivo na indústria de transformação brasileira.
Para concluir, a formulação de uma política industrial competente e efetiva requer uma análise apurada das causas da desindustrialização precoce (nem tão precoce assim, diga-se de passagem) para evitar a persistência e ampliação dos instrumentos antiquados baseados em incentivos fiscais e protecionismo. Instrumentos que contribuíram para o primeiro ciclo de industrialização por substituição de importações, representam hoje um entrave à inovação, ao aumento da produtividade da indústria e à integração às cadeias globais de valor. A produtividade da indústria brasileira está praticamente estagnada (com leve declínio nas últimas duas décadas) enquanto a da agropecuária mais do dobrou no mesmo período (segundo Cláudio Considera, Isabela Kelly e Juliana Trece), causa importante do diferencial de dinamismo e capacidade de exportação.
Mais do que uma política industrial para reverter a desindustrialização "precoce", o Brasil deve implementar uma estratégia de promoção da elevação da competitividade sistêmica da economia e de estímulos fortes à inovação e ao aumento da produtividade das atividades econômicas, especialmente da indústria de transformação. Enquanto o Brasil estiver na rabada do ranking de competitividade global (60º lugar numa lista de 64 países), a renúncia fiscal e o protecionismo vão ter o efeito inverso na indústria brasileira, com estagnação da produtividade e descolamento da cadeia global de valor. E a desindustrialização precoce se consolida.
Sérgio C. Buarque. economista