OPINIÃO

O ilustre peregrino

Na sequência de uma enxurrada de perguntas previsíveis e inúteis acerca da invasão dos limites fixados pela Constituição e das promessas de campanha de Lula de jamais nomear um amigo para o STF, só caberia ao candidato indagar: Em que data vestirei a minha toga?

DAYSE DE VASCONCELOS MAYER
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DAYSE DE VASCONCELOS MAYER
Publicado em 02/07/2023 às 0:00 | Atualizado em 02/07/2023 às 10:54
Pedro França/Agência Senado
Cristiano Zanin, novo ministro do STF indicado pelo presidente Lula - FOTO: Pedro França/Agência Senado

Candidatei-me, nos anos 2000, ao cargo de desembargador pelo quinto constitucional. Conversava com um magistrado amigo quando ingressou no gabinete um togado do TJPE, hoje aposentado. Ao ser apresentada, escutei: "a Dra. não me visitou! Dificilmente eu recomendaria um candidato que não pedisse, insistentemente, o meu voto". Na minha simplicidade, só comparada à obra do Visconde Taunay - "Inocência" - não percebi o sentido das coisas. Isso não sucederia com Cristiano Zanin. O Ministro foi um candidato irreprochável. Com a fisionomia de sacristão do "Auto da Compadecida", foi conduzido ao "céu" com a intersecção de Lula. Para isso teve que gastar solas de sapato percorrendo gabinetes para fazer o seu lobby. Reproduzindo de forma talentosa a minha experiência, logrou, antes da sabatina para ingresso no STF, abiscoitar algumas palavras elogiosas de um nobre senador "Não tenho dúvidas de que o senhor receberá meu voto favorável, porque gostei da sua iniciativa de me visitar".

Zanin foi, quem sabe, o mais pragmático dos candidatos ao STF. Nem mesmo deixou de lado os almoços oferecidos pelos parlamentares da frente evangélica — uma das mais fortes do Congresso. O próprio Bolsonaro, em conversas mal protegidas, ofertou o sinal verde para o PL liberar sua bancada de 12 senadores.

Tais registros concisos levam a uma inferência preocupante: o Poder Legislativo está se deixando, cada vez mais, contaminar pela liturgia política do "ensaio sobre a cegueira". Inundam o Congresso - e também o Judiciário e o mundo jurídico - inovações geradas por uma "falange de experts" que estende os seus tentáculos até onde os interesses individuais e grupais se acomodam. Nesse mar aberto e profuso, uma doutrina hesitante vem sendo construída à outrance" sobre o "poder discricionário" - capítulo dos mais complexos para aqueles que se dedicam, com afinco, à tarefa de interpretar a envergonhada Constituição brasileira e o encalistrado Direito Administrativo.

Em nenhuma circunstância, são revelados os profundos abismos que acolhem aqueles que praticam o abuso de poder, a conveniência e oportunidade, a impessoalidade e a prossecução do interesse público. Não é sem razão que a Constituição e a Ciência Política começaram a se interessar, grandemente, pelo capítulo dos atos clandestinos do Estado.

A escuta da sabatina do candidato a Ministro fez recordar um episódio narrado pelo ex-presidente do STJ português, Luís Antônio Noronha do Nascimento. O soldado de uma aldeia foi removido para um quartel distante. No dia da apresentação formal ao superior, descobriu que a farda que recebera era pequena demais para o seu tamanho. Ao tentar equacionar o problema, o recruta deu de cara com o comandante do quartel. Desconhecendo a quem se dirigia, pergunta: "Vossemecê pode me dizer onde posso trocar a farda? " Puxando dos galões, o comandante iniciou um discurso abundoso: estava ali para servir a pátria e aprender o significado da hierarquia. O soldado deveria diagnosticar a quem se dirigia e interiorizar a disciplina militar. No fim do monólogo, o superior indaga: percebeste ou não? Ao que o soldado responde: "percebi, sim senhor; mas já agora poderia esclarecer onde posso trocar a farda?

Repetiu-se tal fato durante a sabatina realizada no dia 21 de junho, nomeadamente após as palavras do senador Jacques Wagner: "Zanin está colhendo o fruto do seu trabalho". Na sequência de uma enxurrada de perguntas previsíveis e inúteis acerca da invasão dos limites fixados pela Constituição e das promessas de campanha de Lula de jamais nomear um amigo para o STF, só caberia ao candidato indagar: Em que data vestirei a minha toga?

Moro, descumprindo a promessa de não falar acerca da Lava Jato, também dirigiu as suas perguntas para a liberdade de imprensa. Ao contrário do que se esperava, o candidato admitiu a possibilidade de existir um "conselho de imprensa", esquecendo que uma mídia livre é um sopro de esperança para as democracias. Deveria ter lembrado que as grandes transformações operadas na sociedade não são geradas pelos que têm poder político. Elas são determinadas pelos cidadãos: médicos, enfermeiros, estudantes, advogados, trabalhadores, operários, sindicalistas, ambientalistas...A mídia deve seguir o desejo, aspirações e necessidades do povo.

Zanin ficará quase três décadas no STF. As barbas crescerão no rosto adolescente e rosado, as rugas aparecerão cada vez mais profundas, os cabelos ralos embranquecerão progressivamente... Ele conhece tal realidade. Embora fosse um advogado muito bem pago, preferiu "ir para onde está o silêncio". Descobrirá, aos poucos. que a constituição é produto da arquitetura humana. Assim sendo, é uma obra imperfeita e inacabada. Todavia, mais imperfeita e inacabada será se os três poderes - Legislativo, Executivo e Judiciário - não acertarem a marcha determinada pelo texto vigente.

Dayse de Vasconcelos Mayer, doutora em ciências jurídico-políticas pela FDL.

 

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