OPINIÃO

Esquerdas e direitas

A convivência e a disputa política de diferentes tendências de esquerda e de direita comprometidas com o sistema democrático fortalecem e enriquecem a democracia brasileira.

Sérgio Buarque
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Sérgio Buarque
Publicado em 05/07/2023 às 0:00 | Atualizado em 05/07/2023 às 8:41
FÁTIMA MEIRA/Estadão Conteúdo
A Lula e ao PT interessam jogar na vala comum da direita e da extrema-direita os políticos e intelectuais que não compartilhem das suas teses - FOTO: FÁTIMA MEIRA/Estadão Conteúdo

A polarização política em torno de Lula e Bolsonaro gerou uma sensação de que, no Brasil, existe uma única tendência de esquerda, que convive e aproveita a democracia, mas tem valores e pretensões autoritárias, e uma única direita, que é golpista e autoritária. Na verdade, dentro do amplo espectro político-ideológico existem várias tendências de esquerda e muitas visões de direita, incluindo uma esquerda democrática, que defende as reformas sociais e econômicas, mas rejeita pretensões autoritárias e repudia os modelos autocráticos da Venezuela e da Nicarágua, e uma direita democrática que, mesmo não aceitando mudanças de comportamento na sociedade, discorda dos propósitos golpistas e ditatoriais de Bolsonaro. Muitos intelectuais e políticos do MDB, do PSDB, do PSD, e mesmo de outros partidos menores, são democratas, mesmo tendo posições conservadores e até reacionárias, são totalmente diferentes da extrema direita bolsonarista.

O Brasil tem uma esquerda democrática, com membros dispersos em vários partidos políticos e movimentos sociais, inclusive no próprio PT, que apostam em reformas sociais e em políticas públicas para enfrentar as desigualdades sociais, mas rejeitam o festival de disparates do presidente Lula, da presidente do PT, Gleise Hoffmann, e do Foro de São Paulo, com um anti-imperialismo primário que leva à aprovação da invasão da Ucrânia pela Rússia, à exaltação da China como uma espécie de salvação da humanidade, e à defesa dos regimes autoritários da América Latina. O ex-senador Cristovam Buarque, a ministra Marina Silva e alguns grandes intelectuais brasileiros, como o cientista político José Álvaro Moises, são expressões desta esquerda democrática.

Quando defende as ditaduras pretensamente de esquerda, o presidente Lula da Silva e o PT expressam uma tendência de esquerda com viés autoritário, contaminada ainda pela ideia de ditadura do proletariado, além de prisioneira das visões anacrônicas sobre os meios para construção de uma sociedade de bem-estar. Na tentativa de defender o sistema autoritário de Nicolas Maduro, recebido com honras pelo presidente, Lula chegou ao disparate de afirmar que a democracia é relativa, que ele tinha uma visão de democracia diferente da visão do jornalista que o entrevistava. Bolsonaro deve ter adorado esta relativização da democracia porque pode dizer agora que é também um democrata com uma visão diferente da de Lula, lembrando que, aliás, foi o presidente-ditador Ernesto Geisel quem primeiro afirmou que a democracia era relativa (Lula deveria citar a fonte). Poderia dizer ainda que, se basta ter eleições para um Estado ser considerado democrático, como pensa Lula quando fala da Venezuela, a ditadura militar do Brasil seria uma "democracia diferente" já que também tinham eleições amplas para o parlamento brasileiro. A esquerda democrática e os democratas conservadores, com concepções e propostas bem diferentes para o desenvolvimento do Brasil, não pensam como Lula e Bolsonaro e entendem que democracia exige eleições livres, pluralismo político, liberdade de expressão, de organização e de imprensa, instituições sólidas e judiciário independente.

Se, para a extrema direita de Bolsonaro, o "modelo" de democracia é a ditadura militar de Geisel, para Lula o "modelo" parece ser a Venezuela e a Nicarágua. Na mesma entrevista em que afirmou que democracia é relativa, Lula ainda cometeu o ato falho de dizer que gosta de democracia porque se elegeu presidente da República por três vezes. É preciso reconhecer que, apesar da simpatia e defesa das ditaduras ditas de esquerda, Lula e o PT governaram o Brasil por mais de doze anos e não tentaram destruir a democracia brasileira, exceto pelas propostas fracassadas do "controle social da imprensa", seja lá o que isso significa, e pelos ataques persistentes às instituições, principalmente aos meios de comunicação, chamando de PIG-Partido da Imprensa Golpista os órgãos da imprensa que divulgassem as mazelas e criticassem os seus governos. Mas, Bolsonaro, ao contrário do PT, tentou efetivamente dar um golpe de Estado para se manter no poder e implantar uma ditadura no Brasil.

A Lula e ao PT interessam jogar na vala comum da direita e da extrema-direita os políticos e intelectuais que não compartilhem das suas teses e ousem criticar o seu governo, como forma de alimentação da polarização política e fanática que levou à sua eleição para um terceiro mandato e poderá manter o ambiente de confronto entre o bem o mal até o próximo pleito presidencial. A polarização, que embrutece e trava o debate amplo de ideias e propostas para a construção do futuro do Brasil, interessa aos dois extremos - lulismo e bolsonarismo - mas prejudica a democracia brasileira. Ao contrário, a convivência e a disputa política de diferentes tendências de esquerda e de direita comprometidas com o sistema democrático fortalecem e enriquecem a democracia brasileira.

Sérgio Buarque, economista

 

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