Meu colega e ex-reitor da UFPE, Anísio Brasileiro, perguntou-me certa vez "como eu escrevia meus artigos?" Não me lembro da resposta que lhe dei, mas, estranhamente, a "ideia" de um novo artigo sempre me ocorre ao acordar ou no meio da noite (tenho a Síndrome da Hora do Demônio, e ele, o Capiroto, me chama sempre às 3 da manhã!). Mas estou longe de pensar que aquilo que eu escrevo seja o resultado de uma inspiração matinal: o escritor, já se disse, é alguém que escreve, e quando não escreve está pensando no que vai escrever! E não há escritor que não seja também um disciplinado leitor: eu leio muito mais do que escrevo.
Reconheço, no entanto, que há uma dor, uma angústia específica em quem escreve. E vou sugerir, a seguir, uma interpretação.
Deus, o Todo Poderoso, antes de criar todas as coisas, já dispunha da PALAVRA, aquela palavra inaugural que uma vez pronunciada criava as coisas às quais elas correspondiam: não havia nenhuma fratura, nenhum desencontro entre significante (a palavra que nomeia) e significado (a coisa nomeada). O problema é que, uma vez no mundo, as coisas, os entes, os objetos querem escapar da palavra que os cria e funda!
O escritor vem ao mundo porque ele acha que pode pretensiosamente refazer o trabalho de Deus - as coisas nomeadas que estão no mundo podem ser renomeadas, ressemantizadas, ressignificadas ("pobre" pra São Francisco não é o mesmo "pobre" pra Marx!). Deus parte da palavra para o mundo (objetivo ou não), o escritor parte do mundo para a palavra: ele gostaria que esse mesmo mundo coubesse na palavra, mas aquela palavra não mais essencial (a que define as coisas), mas a palavra contingente, que pode ser mudada em cada "ato de fala", em cada nova exegese. Deus, em princípio, não está sujeito à interpretação (ortodoxia), nós, escritores, estamos, e é com a palavra que produzimos compreensão, significados, conceitos, preconceitos...: as coisas "existem" para nossa consciência quando elas recebem um nome.
Aqui, a nossa Torre de Babel não é a da origem das diferentes línguas que produziram o desentendimento entre aqueles homens que queriam chegar aos céus: é a miséria da interpretação, da luta pela hegemonia dos significados, pelo improvável controle da recepção. Deus, afinal, deseja que a palavra caiba no mundo; o escritor deseja que o mundo caiba na palavra! Todas as duas pretensões são fonte de angústia, discórdia, incompreensão.
Talvez não seja tão difícil concluir que nossa "tarefa" (se é que temos uma) nunca será realizada: estamos, escritores, condenados à instabilidade da palavra e nossa tentativa de se aproximar de Deus, da palavra original, fundante e sem ruptura, é vã!
Desculpa Anísio, mas continuo sem resposta para sua pergunta...
Flávio Brayner, professor emérito da UFPE