OPINIÃO

A legítima defesa da honra

O STF decidiu por exaltar a vida humana, em detrimento do princípio da ampla defesa, que autoriza o defensor do réu a utilizar qualquer tipo de argumentação fática ou jurídica, em sua exposição, cabendo aos jurados decidirem pelo acatamento ou não da tese sustentada pela defesa pública ou privada.

Adeildo Nunes
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Adeildo Nunes
Publicado em 13/07/2023 às 0:00 | Atualizado em 13/07/2023 às 6:57
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O Código Penal Brasileiro de 1940, com as suas alterações posteriores, estabelece que não haverá crime quando o agente praticar uma conduta tida como delituosa, em estado de necessidade, em legítima defesa ou em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. São as denominadas excludentes de ilicitude, que são consagradas em todas as legislações penais do mundo, mormente após o final do século 18, com os anseios sociais conquistados pela Revolução Francesa de 1792. Este mesmo Código Penal brasileiro define que haverá o estado de necessidade quando alguém pratica um fato para salvar-se de um perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, em defesa de direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir. Porém, não pode alegar o estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo.

Um exemplo clássico da incidência do estado de necessidade: duas pessoas viajam em um barco, no alto mar, quando, inesperadamente, há um naufrágio. O barco só cabe uma pessoa. Nesse caso, para salvar a sua própria vida, um dos agentes mata o companheiro de viagem, pois do contrário os dois fatalmente perderiam a vida. Quem tirou a vida do outro, neste caso, não cometeu um crime, pois agiu em estado de necessidade, embora tenha praticado uma conduta tipificada na lei como sendo um homicídio.

Outra exclusão de ilicitude, diz respeito àquela situação concreta onde alguém, em estrito cumprimento de um dever legal ou no exercício regular do direito, adota uma conduta que a lei penal define como crime, mas, considerando a sua condição profissional, é ele autorizado a praticar fatos que são definidos como crime, desde que o faça em estrito cumprimento de um dever legal. Assim, por exemplo, se um oficial de justiça, de poder de um mandado judicial, ingressa em uma residência para realizar uma busca e apreensão, com a finalidade de fazer cumprir a ordem judicial e, no ambiente residencial, o agente do Estado é obrigado a cometer um fato descrito como ilícito penal, mas o fez com a finalidade de efetivar o fiel cumprimento da medida judicial, neste caso, o meirinho não cometeu nenhum delito.

De conformidade com o Código Penal brasileiro, o estado de legítima defesa é definido como aquela conduta humana em que alguém, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, com o fim de proteger seu direito ou de outra pessoa. No afã de proteger a sua própria vida ou de terceiros, como se nota, não haverá crime se alguém tirar a vida de outrem, desde que o faça nas condições estabelecidas na lei penal. A legítima defesa, portanto, pode ser própria ou de terceiros. A tese da legítima defesa, sem dúvidas, é a mais utilizada pela defesa dos réus, no plenário do Tribunal do Júri, nos crimes contra a vida, consumados ou tentados, mas exige sapiência e conhecimento profundo do tema por parte do profissional do Direito. Há advogados públicos e privados que são especialistas na matéria, quase sempre conseguindo o intento de convencer os 7 (sete) jurados da inexistência do crime, usando a legítima defesa para justificar a absolvição do acusado. Há casos em que o representante do Ministério Público, reconhecendo a exclusão de ilicitude, pede, em plenário, a absolvição do acusado. É comum isso acontecer.

Como já registrado, a lei penal brasileira não contempla e nem nunca regulou a figura da legítima defesa da honra. Nos manuais de Direito Penal é comum encontrar que essa tese, no Brasil, surgiu no período colonial, quando a tradição da honra masculina estava em seu apogeu. Nesse diapasão, o homem que matasse a mulher por infidelidade conjugal, no mais das vezes era absolvido com base na legítima defesa da honra. Essa anomalia retrógrada e machista, acreditem, ainda hoje perdura nas sustentações orais que são realizadas no plenário do Tribunal do Júri, embora não exista lei autorizando essa excrescência jurídica que praticamente autoriza o homem a tirar a vida da mulher, em defesa da sua honra.

Em dezembro de 1986, o empresário Doca Street, hoje falecido, assassinou a socialite Ângela Diniz, um crime que abalou a sociedade brasileira, com repercussão no resto do mundo. Doca, assistido no plenário do Júri pelo advogado Evandro Lins e Silva, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, foi absolvido pelos jurados, com base na tese da legítima defesa da honra, ao argumento de que Doca "havia matado por amor", já que a Ângela o traía.

Este argumento gerou muitas polêmicas no mundo dos meios de comunicação e da sociedade brasileira e estrangeira. Militantes feministas organizaram um movimento cujo slogan - "quem ama não mata" - tornou-se, anos mais tarde, o título de uma minissérie da TV Globo. Na época, o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) escreveu: "Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras", se referindo à estratégia da defesa de Doca Street de culpabilizar Ângela Diniz pelo crime. Em 2006, Doca Street chegou a lançar um livro trinta anos depois do crime, chamado "Mea Culpa", onde conta a versão dele sobre o crime. O livro foi alvo de críticas da família da socialite.

Recentemente, todavia, o plenário do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade de votos, decidiu pela inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero, excluindo, portanto, a legítima defesa da honra como tese defensiva no Tribunal do Júri, sob pena de nulidade. Restou claro, entretanto, que o STF decidiu por exaltar a vida humana, em detrimento do princípio da ampla defesa, que autoriza o defensor do réu a utilizar qualquer tipo de argumentação fática ou jurídica, em sua exposição, cabendo aos jurados decidirem pelo acatamento ou não da tese sustentada pela defesa pública ou privada.

Adeildo Nunes, juiz de Direito aposentado, professor, doutor e mestre em Direito, advogado criminalista, sócio do escritório Nunes & Rêgo Barros - Advogados Associados

 

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