OPINIÃO

Elis e a caretice do mundo atual

Elis Regina se fez retratar de maneira carinhosa, respeitosa, como homenagem, em um dueto com a própria filha, as duas cantando trecho da pérola "Como nossos pais", de Belchior. Sim, é um "deep fake", mas e daí? Fez-se a apologia ao crime? Elis terá tido a sua biografia violentada de alguma maneira?

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire
Cadastrado por
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire
Publicado em 13/07/2023 às 0:00 | Atualizado em 13/07/2023 às 6:57
Jeso Carneiro / Flickr
Elis Regina é uma das maiores cantoras do Brasil - FOTO: Jeso Carneiro / Flickr

Muitas opiniões e sentimentos divididos. Até nisso a armadilha da polarização. Mas não vem sendo sempre isso? A bola da vez atende pela recriação por inteligência artificial da saudosa cantora Elis Regina, que faleceu há pouco mais de quatro décadas, para atuar ao lado da filha Maria Rita, ambas cantoras brilhantes, em um comercial dos 70 anos de Brasil da montadora automotiva alemã Volkswagen. O "plot": retratar a evolução passado-futuro rumo ao infinito.

Sem dúvidas, a humanidade atravessa uma nova revolução industrial, em cujo contexto a tecnologia vem cada vez mais se superando. A sofisticação gradativa dos algoritmos permite que os computadores desempenhem tarefas não-braçais e, da mesma maneira, propulsiona segmentos como o mundo do entretenimento a patamares cada vez mais ousados (exemplo é o rejuvenescimento digital no cinema), retroalimentando o interesse do público consumidor.

No campo do Direito, o pensamento que vem predominando é o da cautela. Com efeito, a inteligência artificial, se não deve ser estigmatizada como inimiga, até por que não o é, de outro lado, não se iguala ao "Übermensch" citado por Nietzche, personagem que, atuando nas sombras, indiferente às normas e aos contratos sociais e às leis, personifica um estado de exceção.

Voltando ao comercial e à polêmica que frutificou. Qual o escândalo? Difícil, senão impossível, a decupagem de um. Elis Regina se fez retratar de maneira carinhosa, respeitosa, como homenagem, em um dueto com a própria filha, as duas cantando trecho da pérola "Como nossos pais", de Belchior. Sim, é um "deep fake", mas e daí? Fez-se a apologia ao crime? Elis terá tido a sua biografia violentada de alguma maneira?

A principal crítica assacada contra o comercial não é de ordem criativa, mas de patrulhamento ideológico. Remete à postura da montadora alemã de carros diante da ditadura que jogou nas trevas o Brasil por vinte e um anos no período de 1964 a 1985, regime causador de profunda dor, e que tanto Elis, quanto Belchior, compositor de "Como nossos pais", denunciaram e contra o qual não cansaram de protestar.

O mundo não pode estar se tornando tão chato. A controvérsia do comercial comprova, porém, que este é um risco real e como tal que ainda assombra e deve ser combatido, pela saúde mental coletiva. A caretice disfarçada de falso moralismo não pode imperar. Basta ver que a icônica cantora morta em 1982 fumava bastante. Ora, se hoje a IA a recriasse em uma campanha antitabagista, no que isso agrediria a sua memória? A quem ofenderia? Se a direção da montadora alemã errou no apoio à ditadura, por que o banimento ad perpetuam, como em uma espécie de exílio, quase como se fôra a empresa fabricante de carros um organismo tomado pela lepra?

Uma interpretação amarga, e, nessa amplitude, revanchista, da letra da canção interpretada por mãe e filha no comercial, poderia conduzir à percepção de que os publicitários criadores ou ignoram a história ou a desprezam, quando não é nada disso. O comercial claramente é um tributo, não uma violência.

Não há, com boa vontade, motivação legítima para sentenciar que tudo está errado com a campanha. Nem que Elis foi reduzida a uma "vendedora de carros", nem que a sua imagem foi vandalizada, nem que a sua heroica contribuição pela luta em prol da redemocratização foi atirada na sarjeta. Não se engendrou qualquer insulto, achaque ou vilipêndio. O que se fez equivale a um tributo emocionado e a emoção é um movimento da alma, acompanhado sempre de um grau variável de sofrimento ou prazer, como lecionava Aristóteles na antiguidade grega. Não houve crime, nem pecado, logo, não deve haver castigo.

E é assim que a campanha em tela merece ser entendida. Como um presente à emoção à voz que nunca se calou verdadeiramente. Não houve o dizimamento da ética, nem se perderam os escrúpulos. O comercial com Elis possui contexto, pois é, nas palavras da própria Maria Rita, filha de Elis, um "momento mágico" e a "realização de um sonho". Ora, se a família cultua esse sentimento, o que mais há a dizer? Talvez, quando muito, e com todo o respeito, que a ninguém aproveita caçar cabelo em ovo. Saudades da eterna Pimentinha.

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

 

Edição do Jornal

img-1 img-2

Confira a Edição completa do Jornal de hoje em apenas um clique

Últimas notícias